quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

A Salvo - 1995

Título Original: Safe
Lançamento: 1995
País: EUA
Diretor: Todd Haynes
Atores: Julianne MooreXander Berkeley, Dean Norris, Peter Friedman, James LeGros.
Duração: 119 min
Gênero: Drama

Julianne Moore protagoniza Safe

O primeiro filme de Todd Haynes foi um curta-metragem de 1985, inspirado no poeta francês Arthur Rimbaud. Desde então, o diretor realizou cinco longas-metragens, dentre eles Poison (1991)Velvet Goldmine (1998), Longe do Paraíso (2002) e Não estou lá (2007). Mesmo optando por manter certa distância do mainstream e do cinema comercial, os filmes de Haynes nunca passaram despercebidos pela crítica. Apesar de ser assumidamente homossexual e de ser muitas vezes associado ao movimento New Queer Cinema, o diretor sempre evitou rótulos para a sua obra, sendo considerado um dos nomes mais importantes do cinema independente americano. A Salvo (1995) é o segundo longa-metragem do diretor, que também assina o  roteiro. O filme é protagonizado por Julianne Moore, com quem Haynes voltaria a trabalhar em Longe do Paraíso, pelo qual ambos concorreram ao Oscar (ele como roteirista, ela como atriz principal). 

O filme conta a história de Carol White, uma dona-de-casa que leva uma vida bastante confortável com seu marido e enteado no sul da Califórnia. A rotina de Carol consiste em fazer ginástica, encontrar suas amigas ricas e fúteis e supervisionar a nova decoração de sua mansão. No entanto, algo começa a perturbar a vida da dona-de-casa. Ela começa a sentir dores, enjoos, sofrer de insônia, ter problemas de respiração, além de tosses convulsivas. Todos os exames indicam que a saúde de Carol é perfeita, fazendo com que esses sintomas pareçam ainda mais estranhos e quase inexplicáveis. Certo dia, a personagem entra em contato com um grupo de pessoas que acreditam terem a saúde debilitada devido ao acúmulo de substâncias químicas  no meio ambiente. Carol acaba por se convencer que sofre também de sensibilidade a químicos, transformando completamente a sua vida e se isolando da sociedade. 

A Salvo é um filme incômodo e perturbador. O brilhantismo do roteiro de Haynes é o de abrir as portas a várias leituras e interpretações. O diretor-roteirista parece retratar no filme o mal-estar da civilização e a confusão existencial do homem pós-moderno. Carol White é o símbolo do indivíduo desajustado, perdido, aterrorizado pela profusão de informações e engolido pelo medo. O cotidiano da protagonista é invadido por todo tipo de notícias relacionadas à morte, a doenças e a outros perigos mil. A personagem acaba por desenvolver um tipo de hipocondria existencial, não podendo mais viver a mercê dos perigos da vida em sociedade. De natureza psicossomática ou não, os sintomas desenvolvidos por Carol acabam por revelar sua inaptidão em manter um determinado estilo de vida. 

Haynes nos dá algumas pistas para tentar compreender a natureza de Carol. A dona-de-casa impressiona pela sua extrema fragilidade, algo que fica nítido na fantástica composição de Julianne Moore. A voz delicada e sem força da personagem, denuncia sua personalidade passiva, sem vida, quase desinteressante. Em uma das primeiras cenas do filme, assistimos a uma cena de sexo, em que a protagonista fica completamente a mercê do marido, como se estivesse anestesiada, apenas cumprindo uma missão imposta pelo casamento. Sem vontades, sem voz e sem lugar no mundo, Carol parece carregar um vazio emocional profundo e podemos formular a hipótese de que sua "doença" seja, de fato, uma alergia a si mesma. Sua crise pode muito bem estar ligada a um grave problema de auto-estima, a uma absoluta falta de amor a si mesma, ou ao que ela se tornou. É interessante perceber que, em determinada cena, a personagem se vê incapaz de se lembrar da própria infância, como se ela simplesmente não houvesse existido. O isolamento de Carol talvez revele uma necessidade de autoconhecimento e de descoberta de sua individualidade. 

O mal-estar físico de Carol também pode ser visto como um alarme de segurança, um desejo de autoconservação. O spa onde se isola a dona-de-casa é um esconderijo contra os males que afligem o mundo. Não por acaso, na época do lançamento do filme, muitos o consideraram como uma metáfora da propagação da AIDS. O filme reflete uma paranoia generalizada e um desejo de purificação. Haynes não se abstém de mostrar a ironia que consiste em se deixar de viver (isolando-se do mundo), para, justamente, se viver mais. Certamente, o mundo real nos parece, por vezes, inóspito e insalubre, mas será que não é justamente o medo a maior doença do século XXI? A vida do homem pós-moderno é dominada por diversos temores: temos medo da violência, da morte, da destruição ambiental, do terrorismo, dos fenômenos ambientais, da pobreza, do desemprego, etc. A Salvo funciona, portanto, como uma fábula sobre o poder avassalador do medo. 

A direção de Todd Haynes acentua o caráter perturbador da história. O cineasta se interessa, por exemplo, ao que podemos chamar de tempos vazios, instantes que não correspondem a acontecimentos. Ao focalizar os momentos mais ordinários da existência de Carol, o diretor chama atenção para a superficialidade da vida da personagem. O diretor ainda dá preferência a longos planos médios e fixos e a uma montagem que confere um ritmo lento à narrativa, escolhas que vão de encontro à sensação de incômodo provocada pela trama. Ao final do filme, Haynes passa a inserir também grandes planos de paisagem que ilustram o retorno da personagem à natureza e seu isolamento. A trilha sonora de A Salvo é típica de um filme de suspense, sendo fundamental para a construção de uma atmosfera tensa e angustiante. Por fim, a atuação de Julianne Moore é uma pequena obra-prima e a atriz, além de dar vida ao mal-estar existencial (e físico) de Carol, compõe uma personagem que parece ser uma folha em branco ou talvez um papel de seda. 

A Salvo não é está entre os filmes mais conhecidos e celebrados da filmografia de Todd Haynes, cineasta também pouco conhecido do grande público. O filme merece, portanto, ser descoberto e admirado pela sua capacidade de sintetizar sentimentos que fazem parte do nosso mundo atual, revelando a fragilidade do homem e sua inaptidão a viver em sociedade. 

Assista à abertura do filme:


segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Vencedores do Oscar 2012



Talvez os fatores que tenham feito o Oscar 2012 um pouco melhor do que a sua edição anterior tenham sido a seleção dos filmes indicados neste ano, mais interessante do que a do ano passado, e o fato de que os votantes erraram menos ao escolher os vencedores. O show em si foi a prova de que a Academia ainda não achou o formato ideal para apresentação. Por mais que tenha ficado mais dinâmica e menos longa, a festa está cada vez menos interessante como entretenimento. Até mesmo o quase-sempre ótimo Billy Crystal decepcionou, revelando-se não inspirado e pouquíssimo engraçado (apesar de seu desempenho não ter sido tão embaraçoso como o da dupla de apresentadores do ano passado). Previsível, insípido e sem personalidade, o Oscar 2012 mostrou que pode ser cansativo mesmo tendo menos de três horas de duração. Quem é cinéfilo e acompanha anualmente a premiação, no entanto, persistiu e entrou madrugada adentro vendo o show (eu, que estou na Hungria, por exemplo, fui dormir depois das 6 horas da manhã). Apesar de não ter resgatado o charme de edições passadas, o Oscar laureou dois grandes filmes que, coincidentemente ou não, são declarações de amor ao cinema. Os grandes vencedores da noite foram O Artista e A Invenção de Hugo Cabret, com cinco Oscar's cada um.

Confira a lista de vencedores das principais categorias e alguns breves comentários: 

Melhor Filme: O Artista - O prêmio maior da noite foi para um excelente filme (o que já é um alívio, vide o ano passado). Merecido. Meu coração, no entanto, bate mais forte por A Invenção de Hugo Cabret e adoraria tê-lo visto vitorioso

Melhor Diretor: Michel Hazanavicius, por O Artista - O diretor francês faz um belo trabalho em O Artista, mas eu daria o prêmio ao veterano e genial Martin Scorsese, que faz um trabalho brilhante em Hugo Cabret

Melhor Ator: Jean Dujardin, por O Artista - Fiquei aliviado de ver o ator francês ganhar o Oscar. Não conceberia a ideia de George Clooney, com quem o francês dividia o favoritismo, levar um segundo Oscar em tão pouco tempo. Não que o Clooney esteja mal em Os Descendentes, mas seu histórico de atuações não tem consistência o suficiente para que galã tenha no currículo 2 Oscar's. Como explicaríamos Clooney com duas estatuetas e Gary Oldman sem nenhuma? Jean Dujardin esbanja carisma e versatilidade em O Artista. Para dizer bem a verdade, tirando Démian Bichir (cujo filme ainda não vi), nenhum dos atores indicados me arrebatou completamente. Preferiria ver Michael Fassbender e Ryan Gosling indicados. 

Melhor Atriz: Meryl Streep, por A Dama de Ferro - Essa categoria foi muito bem representada por todas as indicadas. Além disso, era uma das mais complicadas de se prever. Viola Davis também parecia ter muitas chances de conquistar o prêmio. A vitória de Streep é merecidíssma, sua atuação é indiscutivelmente soberba. A atriz chegou num patamar invejável em Hollywood: extremamente popular, recordista absoluta de indicações e, agora, a única atriz viva com três Oscar's de atuação. Muitos cinéfilos estavam aguardando ansiosamente o dia em que Streep finalmente levaria a sua terceira estatueta. A boa notícia é que ela fez por merecer, a má é que foi por um filme péssimo. Será que a atriz conseguirá bater Katherinne Hepburn, que conquistou 4 prêmios? Tempo e talento ela tem. Viola Davis é uma força da natureza, uma atriz maravilhosa, e torço que ela volte logo com um ótimo projeto. 

Melhor Ator Coadjuvante: Christopher Plummer, por Toda Forma de Amor - A vitória de Plummer era previsível e, além de ser merecida, é um reconhecimento por sua carreira. O discurso do ator foi um dos mais delicados da festa.

Melhor Atriz Coadjuvante - Octavia Spencer, por Histórias Cruzadas - Todas as indicadas são muito boas. Octavia, no entanto, não é minha favorita, gosto mais do trabalho de sua colega Jessica Chastain. 

Melhor Roteiro Original - Woody Allen, por Meia Noite em Paris - Daria o prêmio ao maravilhoso roteiro de A Separação, mas Woody Allen é Woody Allen e não dá para reclamar de sua vitória. No mais, o roteiro de Meia-Noite em Paris também é ótimo.

Melhor Roteiro Adaptado: Alexander Payne, Nat Faxon e Jim Rash, por Os Descendentes - Dos indicados, ele seria a minha quarta opção para vencer, portanto não achei tão merecido. Daria o prêmio a John Logan por Hugo Cabret

Melhor Fotografia: Robert Richardson, por A Invenção de Hugo Cabret - Uma surpresa para mim. A fotografia do filme é belíssima e nutro amores pelo filme, mas Emmanuel Lubezki merecia seu primeiro Oscar por A Árvore da Vida.  

Melhor Montagem: Millenium: Os homens que Não Amavam as Mulheres - Vibrei com o prêmio. Grande acerto. O filme é sensacional e a montagem idem. 

Melhor Direção de Arte: A Invenção de Hugo Cabret - Merecidíssmo e Dante Ferretti é um ícone do cinema. 

Melhor Figurino: O Artista - Não assisti a todos os indicados, portanto não poderia afirmar se foi justo ou não. De qualquer maneira, o figurino de O Artista é de fato excelente. 

Melhor Trilha Sonora: O Artista - Muito merecido. A trilha sonora é fantástica e cumpre um papel essencial no filme. 

Melhores Efeitos Especiais: A Invenção de Hugo Cabret - Uma grata surpresa para mim. Os outros indicados também são ótimos, mas fico feliz que tenha ido para Hugo Cabret

Melhor Animação: Rango - Na ausência de As Aventuras de TintimRango era o meu favorito. A animação é excelente e Gore Verbinski faz um trabalho muito interessante. 

Melhor Canção: "Man or Muppet" de Os Muppets - Talvez a vitória mais difícil de engolir. Não se trata apenas de patriotismo (por exemplo, não gosto de Rio e acho justo não ter sido indicado em animação). A música de Sergio Mendes e Carlinhos Brown é muito superior a "Man or Muppets", que nem é a mais interessante de Os Muppets. Uma pena!

Melhor Filme Estrangeiro: A Separação - Confirmou o favoritismo. Um dos melhores filmes do ano! 



sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Os Melhores de 2011



O Oscar 2012 marca o fim da temporada de premiações para os filmes lançados em 2011. A aguardada premiação ocorrerá neste domingo, dia 26 de fevereiro. Aproveitando a ocasião, faço a minha lista pessoal dos melhores de 2011, em 17 categorias. Confira e dê sua opinião!

Os 10 melhores filmes de 2011 (por ordem de preferência):

- A Invenção de Hugo Cabret, de Martin Scorsese
- A Separação, de Asghar Farhadi
Melancoliade Lars Von Trier
- Drive, de Nicolas Winding Refn
- O Artista, de Michel Hazanavicius 
- A Árvore da Vida, de Terrence Malick
- Tão Forte e Tão Perto, de Stephen Daldry
- As Aventuras de Tintim, de Steven Spielberg
- Meia-noite em Paris, de Woody Allen

Melhor Diretor: Martin Scorsese, por A Invenção de Hugo Cabret
seguido por: Lars Von Trier, por Melancolia

Melhor Ator: Michael Fassbender, por Shame
seguido por: Thomas Horn, por Tão Forte e Tão Perto.

Melhor Atriz: Meryl Streep, por A Dama de Ferro
seguida por: Rooney Mara, por Millenium: Os Homens Que Não Amavam As Mulheres.

Melhor Ator Coadjuvante: Christopher Plummer, por Toda Forma de Amor
seguido por: Christoph Waltz, por Carnage - Deus da Carnificina.

Melhor Atriz Coadjuvante: Viola Davis, por Histórias Cruzadas
seguida por: Jessica Chastain, por Histórias CruzadasA Árvore da Vida.

Melhor Roteiro Original: A Separação, escrito por Asghar Farhadi
seguido por: Melancolia, escrito por Lars von Trier.

Melhor Roteiro Adaptado: A Invenção de Hugo Cabret, escrito por John Logan
seguido por: Millenium- Os Homens Que Não Amavam As Mulheres, escrito por Steven Zaillian.

Melhor MontagemMillenium: Os Homens Que Não Amavam As Mulheres, de Angus Wall e Kirk Baxter
seguida por: A Invenção de Hugo Cabret, de Thelma Schoonmaker.

Melhor Fotografia: A Árvore da Vida, de Emmanuel Lubezki.
seguida por: O Artista, de Guillaume Schiffman. 

Melhor Direção de Arte: A Invenção de Hugo Cabret, de Dante FerrettiFrancesca Lo Schiavo. 
seguida por: O Artista, de Laurence BennettRobert Gould.

Melhor Maquiagem: A Dama de Ferro, de Mark CoulierJ. Roy Helland
seguida por: Harry Potter e as Relíquias da Morte: Parte 2, de  Nick DudmanAmanda Knight,Lisa Tomblin.

Melhores Efeitos EspeciaisHarry Potter e as Relíquias da Morte: Parte 2, de Tim BurkeDavid VickeryGreg ButlerJohn Richardson
seguido por: X-Men - Primeira Classe, de Scanlan Backus, Hamish Beachman e Steve Benelisha.

Melhor Figurino: Meia Noite em Paris, de Sonia Grande
seguido por: A Invenção de Hugo Cabret, de Sandy Powell.

Melhor Trilha Sonora: Drive, de Cliff Martinez
seguida por: O Artista, de Ludovic Bource.

Melhor Filme de Animação: As Aventuras de Tintim, de Steven Spielberg
seguido por: Rango, de Gore Verbinski.

Melhor Documentário: Pina, de Win Wenders
Seguido por: Senna, de Asif Kapadia.


Categoria bônus:


Pior filme do ano: A Dama de Ferro, de Phyllida Lloyd. 
Seguido por: Não se preocupe, nada vai dar certo, de Hugo Carvana. 


Menções especiais a:


- O elenco de A Separação
- Bryce Dallas Howard e Octavia Spencer, em Histórias Cruzadas
- Kirsten Dunst e Charlotte Gainsbourg, em Melancolia
- Precisamos Falar Sobre Kevin, de Lynne Ramsay.
- O Palhaço, de Selton Mello. 
- O elenco feminino de Missão: Madrinha de Casamento. 
- Sandra Bullock e Max von Sidow, em Tão Forte, Tão Perto. 
- X-Men: Primeira Classe, de Matthew Vaughn.
- Os cachorrinhos adoráveis da ficção:  Uggie (O Artista), Cosmo (de Toda Forma de Amor) e Snowy (As Aventuras de Tintim).


Segunda-feira comentaremos os vencedores do Oscar. Vamos cruzar os dedos por nossos favoritos!

E lembre-se: o segredo para não se irritar com o Oscar é não levá-lo tão a sério. A premiação pode ser a mais famosa do cinema, mas está longe de ser a verdade absoluta. 

Abraços e obrigado por ajudar o Clube do Filme a chegar a 100 mil visitas! 


quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Coração Selvagem - 1990

Título original: Wild at Heart
Lançamento: 1990 
País: EUA
Direção: David Lynch
Atores: Nicolas Cage, Laura Dern, Willem Dafoe, J.E. Freeman, Diane Ladd.
Duração: 98 min
Gênero: Drama
"This whole world's wild at heart and weird on top."

Lula (Laura Dern) e Sailor (Nicolas Cage): um casal quente.
Sailor Ripley (Nicolas Cage) é loucamente apaixonado por Lula Fortune (Laura Dern), mas não tem a aprovação da mãe da moça, Marietta (Diane Ladd). Essa história seria trivial se a tal sogra não fosse completamente desequilibrada e se não ordenasse o assassinato do rapaz; sem contar que se trata de um  filme dirigido por David Lynch. Coração Selvagem (1990) é o quinto longa-metragem do cineasta, que também assina o roteiro do filme, uma adaptação do romance Wild at Heart. Este romance foi o primeiro de uma série de livros protagonizados pelo casal Sailor e Lula. Barry Gifford, autor da série, chegou a trabalhar posteriormente com Lynch no roteiro de Estrada Perdida (1997), um dos filmes cults do diretor.

Coração Selvagem, como indica o título, é um filme derramadamente romântico e incrivelmente erótico. Lula e Sailor têm o apetite sexual de coelhos (metáfora que é inclusive utilizada na trama). O fogo, um dos elementos mais importantes e constantes no filme, refere-se não apenas a acontecimentos da narrativa, mas também à paixão explosiva dos protagonistas. Sailor é um fora da lei que emana testosterona, Lula é uma jovem ninfomaníaca, cuja mentalidade é quase infantil. Como não poderia deixar de ser, Lynch acrescenta um toque de loucura e bizarrice à relação dos amantes. Em certo momento, Lula faz uma declaração inusitada, que parece refletir o espírito do filme, uma história de amor erótica e psicodélica. Ela diz: "Às vezes quando fazemos amor, você me leva para algum lugar além do arco-íris. Sabe exatamente o que acontece comigo, acho que você presta atenção. Amorzinho, juro que você tem um peru lindo. É como se ele falasse comigo, quando está dentro de mim. Você me deixa doida."

Marietta (Diane Ladd) em cena do filme 
Assim como o faz em diversos de seus filmes, Lynch povoa a narrativa de personagens estranhos, que parecem terem saído de um pesadelo. No entanto, ao contrário de seus filmes mais experimentais, Coração Selvagem revela-se extremamente acessível ao espectador e sua estrutura é basicamente linear, mesmo que haja pontualmente a intervenção de flashbacks. Podemos afirmar que Lynch brinca com a narrativa, construindo um filme estilizado, mas que no fundo segue os códigos da aventura romântica. Nota-se também que o diretor foi influenciado por diferentes estilos e gêneros, como o filme policial, o road movie, o romance, o pornô e a soap opera americana. 

Durante o filme, são feitas inúmeras referências ao clássico O Mágico de Oz (1939). Lula é uma versão da Dorothy, uma menina sonhadora que quer chegar do outro lado do arco-íris. Coração Selvagem pode ser compreendido até mesmo como atualização ou modernização do conto de fadas. É divertido perceber que Lynch brinca com a associação entre a história de Lula e o clássico infantil, mostrando, em determinada cena, Marietta calçando sapatos que muito se assemelham aos da Bruxa do Oeste. David Lynch se inspira no universo do conto de fadas, acrescentando altas doses de erotismo e humor e também momentos extremamente sombrios, com destaque para a ótima cena em que Sailor e Lula tentam resgatar uma acidentada. 

Nicolas Cage interpreta, em Coração Selvagem, um tipo comum na sua carreira e foi provavelmente escalado por Lynch por causa do que despertava no imaginário do espectador. O ator evoca a dualidade herói/bandido, assim como a inocência do amante apaixonado. Já a talentosa Laura Dern nunca esteve tão sexy, compondo uma personagem que encanta pela sua infantilidade, luxúria e romantismo. A mãe de Dern na vida real, Diane Ladd, interpreta a mãe dela também na ficção (o que aconteceu diversas vezes na carreira das duas atrizes). Ladd, que foi indicada ao Oscar por sua atuação como Marietta, parece se divertir ao máximo, criando uma personagem caricatural, exagerada e histriônica (as perucas usadas pela atriz são uma diversão a parte). Outro nome famoso do elenco é Willem Dafoe, que surge quase irreconhecível, em uma participação sensacional. 

Cena do filme
Em Coração Selvagem, Lynch se reencontra com alguns de seus parceiros habituais. A começar, temos o compositor Angelo Badalamenti, que compôs a trilha sonora de vários longas-metragens do diretor e da série Twin Peaks (1990-1991), criada por Lynch e Mark Frost. Por falar na série cult, alguns atores que participavam dela também aparecem em Coração Selvagem (o filme foi realizado no mesmo ano da primeira temporada do seriado). Sherilyn FennGrace Zabriskie, Sheryl Lee e Jack Nance, que interpretavam personagens importantes em Twin Peaks, têm participações pequenas, mas impactantes no filme. Em Coração Selvagem,  Lynch também teve a oportunidade de trabalhar novamente com sua musa de Veludo Azul (1986), a atriz Isabella Rosselinni, sua noiva na época. Laura Dern, protagonista de Coração Selvagem, também já havia trabalhado com o diretor em Veludo Azul e protagonizou o último longa-metragem do diretor para o cinema, Império dos Sonhos (2006). 

Coração Selvagem provavelmente não esteja entre os filmes mais notáveis do fantástico David Lynch, mas é, provavelmente, um dos filmes mais divertidos do diretor. Deliciosamente romântico, por vezes bobo, o filme reúne diversos elementos característicos do estilo do cineasta em prol de uma história de amor encantadora. 
Assista ao trailer:

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Mulheres Diabólicas - 1995

Título original: La cérémonie
Lançamento: 1995
País: França
Diretor: Claude Chabrol
Atores: Isabelle HuppertSandrine Bonnaire, Jacqueline Bisset, Jean-Pierre Cassel, Virginie Ledoyen
Gênero: Drama/Suspense


Sophie (Sandrine Bonnaire) e Jeanne (Isabelle Huppert) - Uma amizade funesta.


Em 12 de setembro de 2010, morreu Claude Chabrol aos 80 anos. Recém chegado a Paris, pude presenciar a grande comoção que a morte do cineasta provocou nos franceses, provando que talvez ele tenha sido o diretor mais popular dentre os gigantes da Nouvelle Vague. Assim como GodardTruffautRohmer e Rivette, Chabrol participou do movimento de renovação do cinema francês nos anos 50, sendo um dos grandes nomes da influente Nouvelle Vague. Em mais de 50 anos de carreira, o prolífico Chabrol dirigiu mais de 50 longas-metragens para o cinema, além de diversos trabalhos para a televisão e curtas-metragens. O cineasta se notabilizou por um gênero em particular: o suspense. Mulheres Diabólicas (1995) é considerado um de seus melhores trabalhos, ao lado de O Açougueiro (1970), A Mulher Infiel (1969) e Um Assunto de Mulheres (1988). O filme é também a terceira de sete parcerias do diretor com uma de suas atrizes favoritas, a talentosíssima e multipremiada Isabelle Huppert. 

Mulheres Diabólicas conta a história da jovem Sophie, que é contratada para trabalhar como empregada na mansão de uma família abastada, no interior da França. A dona da casa, Catherine Lelievre (Jacqueline Bisset), deposita grande confiança em Sophie e fica impressionada com a eficiência da jovem e com sua personalidade austera e reservada. A empregada, no entanto, guarda alguns segredos, como o fato de ser analfabeta. Rapidamente, Sophie faz amizade com Jeanne (Isabelle Huppert), moça espontânea e extrovertida, que trabalha no correio da pequena cidade e que não se dá nada bem com Georges Lelievre (Jean-Pierre Cassel), marido de Catherine. Jeanne e Sophie têm algo em comum, ambas foram consideradas suspeitas de assassinato no passado, mas eventualmente inocentadas por falta de provas.

A versão brasileira do título original (La Cérémonie - A Cerimônia) pode ser considerada um pequeno spoiler, uma vez que revela algo que é apenas insinuado durante grande parte do filme. Certamente, um dos grandes charmes da obra de Chabrol é o de construir uma aura estranha em torno das duas protagonistas sem, no entanto, revelar a verdade sobre elas. A banalidade do enredo se contrapõe à sensação de perigo iminente, o que faz do filme uma experiência deliciosamente instigante. A presença de Sophie é inquietante. Monossilábica, fria, estranha, a personagem parece não ser dotada de qualquer traquejo social, impondo uma distância a todos em sua volta, com exceção de Jeanne. É interessante perceber como Catherine tenta estabelecer uma relação afetuosa com a empregada através do contato físico, que é recebido com indiferença. Jeanne, por sua vez, parece o oposto de Sophie, falastrona, espaçosa, bisbilhoteira, ela carrega a energia extra que parece faltar na empregada. Um elemento quase sobrenatural parece atrair essas duas mulheres solitárias, que se tornam cúmplices e amigas. Intuitivamente, elas reconhecem, uma na outra, o mesmo potencial psicopata. Além disso, é possível também perceber um homoerotismo entre as duas personagens.  

A relação das duas protagonistas é construída de maneira magistral por Chabrol (que também é responsável pelo roteiro ao lado de Caroline Eliacheff). Jeanne insere o caos na vida de Sophie, que o aceita sem a mínima luta. Jeanne despreza as regras sociais. Nada a seduz mais que a transgressão. Além disso, ela nutre um misto de ódio, desprezo e inveja pela família Lelievre, perfeito modelo da feliz família burguesa. Tudo nos leva a crer que a aproximação de Jeanne a Sophie é arquitetada pela primeira, como uma maneira de se inserir na realidade dos Lelievre. Sophie se entrega à manipulação e, sem nenhuma resistência, entra no perigoso jogo da nova amiga. Ao longo da trama, as duas mulheres parecem se mimetizar, usando, inclusive, o mesmo penteado. Mas não se engane: Sophie nada tem de vítima ou inocente. É interessante perceber, por exemplo, que enquanto sua comparsa revela um pouco de seu passado, Sophie nada expõe de seu mistério, revelando-se, ao final, tão ou mais perigosa que Jeanne. 

Chabrol sempre revelou uma visão ácida da burguesia. Em Mulheres Diabólicas, ele faz uma pintura muito interessante da diferença de classes. Os Lelievre são figuras cheias de boas intenções, com uma rotina perfeita, uma casa deslumbrante e cujo programa de família é se reunir para ouvir ópera. A mansão em que vivem se contrasta com o modesto e diminuto apartamento de Jeanne, que é tomada por um sentimento de injustiça social latente. O espectador tende a se identificar com as protagonistas e não com a família, uma vez que o filme adota o ponto de vista das mulheres. O longa-metragem pode ser encarado como uma alegoria de uma "vingança social". 

O que seria de Mulheres Diabólicas sem seu ótimo elenco? Sandrine Bonnaire (que tem um rosto lindo e marcante) faz um trabalho impressionante. Uma atuação é magistral quando a personagem parece ter vida própria, se revelando maior que a ficção. A intensidade do olhar de Bonnaire e a precisão de sua interpretação fazem de Sophie uma personagem fascinante e assustadora. A performance contida da atriz se contrapõe maravilhosamente à exuberância de Isabelle Huppert, que nos oferece uma atuação cheia de vida e energia. Completando o elenco, temos a belíssima Jacqueline Bisset, que encarna com naturalidade e elegância a refinada Catherine, e o veterano Jean-Pierre Cassel, também excelente. 

Mulheres diabólicas ainda conta com a sombria trilha sonora de Matthieu Chabrol (filho do diretor) e com um final inesquecível, carregado de humor negro, ironia e um tom quase surrealista. Neste filme, Chabrol comprova ser um mestre do thriller, compondo uma narrativa instigante e inquietante. 

Assista ao trailer:





sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Tão Forte e Tão Perto - 2011

Título original: Extremely Loud and Incredibly Close
Lançamento: 2011 
País: EUA
Direção: Stephen Daldry
Atores: Tom Hanks, Sandra Bullock, Thomas Horn, John Goodman, Max von Sidow.
Duração: 129 min
Gênero: Drama
Estreia no Brasil: 24 de fevereiro

O estreante Thomas Horn interpreta Oskar Schell em Tão Forte e Tão Perto

Como descrever Oskar Schell, protagonista de Tão Forte e Tão Perto? Irritantemente inteligente, precoce, inflexível, teimoso, curioso, racional, aventureiro, medroso, estranho, genioso, meticuloso, sensível, cheio de manias, paranoico, autoritário, antissocial, detestavelmente adorável. Como descrever a performance de Thomas Horn, intérprete de Oskar? Extraordinária, fora de série, surpreendente, comovente, de tirar o fôlego, impressionante e uma das melhores de 2011. Toda essa empolgação não é injustificada (prometo). Tão Forte e Tão Perto é o primeiro trabalho no cinema desse garoto de 14 anos e, se o mundo fosse justo, ele estaria concorrendo ao Oscar de Melhor Ator neste ano e ainda seria um dos favoritos a levar a estatueta para casa. Mas quem precisa do reconhecimento do Oscar ou de qualquer outra premiação quando se é tão jovem e promissor? 

Comecemos pelo começo. Tão Forte e Tão Perto é apenas o quarto longa-metragem do diretor inglês Stephen Daldry. Mesmo tendo um currículo ainda curto, amor da crítica é o que não falta ao cineasta de 50 anos. Daldry foi indicado três vezes ao Oscar de Melhor Diretor pelos seus três primeiros filmes. Mas não é só isso: seus três últimos filmes foram indicados ao prêmio principal. Quando a maioria de nós pensava que ele não seria lembrado na lista final da Academia, este ano, eis que Tão Forte e Tão Perto abocanha uma inesperada indicação a Melhor Filme. É uma pena, no entanto, que os votantes da Academia tenham sido tão econômicos com o filme, lembrando-se dele em apenas duas categorias (Filme e Ator Coadjuvante). Mas chega de falar de Oscar! O importante é que depois de dois grandes filmes, Billy Elliot (2000) e As Horas (2002) e um apenas bom, O Leitor (2008), Daldry volta com tudo, em um filme exemplar, provando que errar não é com ele. 

O roteiro do novo filme de Daldry é de responsabilidade do veterano Eric Roth. Alguns dos trabalhos anteriores do roteirista são: Forrest Gump (1994), O Informante (1999) e O Curioso Caso de Benjamin Button (2008). Em Tão Forte, Tão Perto, Roth adapta o romance Extremely Loud and Incredibly Close do escritor americano Jonathan Safran Foer, publicado em 2005. O filme, assim como o romance, é centrado em Oskar Schell, garoto de nove anos, cujo pai morreu no atentado de 11 de setembro às Torres Gêmeas. Schell era extremamente apegado ao pai, Thomas (Tom Hanks) que incentivava o interesse do menino pela aventura, pela ciência e pela pesquisa. Um ano após a morte de Thomas, Schell encontra uma chave entre os pertences do pai e inicia uma exaustiva peregrinação para descobrir o que ela abre. 



A busca de Schell pelo segredo do pai é uma tentativa do garoto de adiar o enfrentamento da perda. O menino, que sempre surpreende o espectador pela sua perspicácia e pelo seu raciocínio lógico, tem plena consciência que sua aventura é uma maneira de adiar uma inevitável "separação", ou seja, enquanto ele estiver envolvido com sua missão, não precisará "despedir-se" do pai. A jornada pessoal de Schell é essencial para que a criança aceite a perda, supere a dor e consiga viver com uma culpa que o atormenta. O belo e eficiente roteiro de Eric Roth acerta ao construir sua narrativa através do ponto de vista da criança, que assume também o papel de narradora no filme. Mesmo que o protagonista não corresponda à ideia de criança adorável (e ele é capaz de dizer coisas cruéis e ser bem desagradável), o espectador acaba por se familiarizar com o menino, conseguindo compreender suas motivações e enxergar suas limitações e qualidades. O roteiro de Roth não apenas permite que criemos um vínculo com o personagem principal, mas também que tenhamos acesso ao seu universo dominado pela lógica e pela razão. 

Daldry mergulha no universo infantil com a mesma sensibilidade que havia demonstrado em Billy Elliot. O diretor dá à narrativa o dinamismo de uma aventura, mas consegue, ao mesmo tempo, explorar cada nuance da personalidade do protagonista, assim como o potencial dramático da história. Mesmo revelando-se por vezes sentimentalista, o filme jamais se torna sentimentaloide. E é interessante perceber que Daldry contorna as armadilhas, evitando cair na pieguice e no melodrama. Impressionam também a decupagem do filme, o capricho da direção de arte e a bela fotografia. 

Outro ponto forte do filme é seu elenco. O já citado Thomas Horn demonstra uma maturidade cênica impressionante. O ator estreante está em praticamente todas as cenas, interpreta um personagem delicado e difícil e, mesmo assim, carrega o filme nas costas. Outro destaque é Sandra Bullock, numa das performances mais maduras e interessantes de sua carreira, o que prova que ela vêm evoluindo cada vez mais, saindo da sua zona de conforto que é a comédia. O maravilhoso e veterano ator sueco Max von Sidow, indicado ao Oscar por sua atuação no filme, não profere uma só palavra durante o filme, mas constrói um dos personagens mais instigantes da história. Daldry ainda se dá ao luxo de usar nomes de peso em participações especiais: Viola Davis (que tem uma cena linda), John Goodman e Jeffrey Wright têm pouco tempo de cena. Já Tom Hanks, que dá vida ao pai de Oskar, não faz muito mais que o usual, mas sua persona cai como uma luva para o papel. 

Tão Forte e Tão Perto me surpreendeu. O que poderia ser mais um drama lacrimejoso sobre uma das maiores tragédias da história norte-americana, revela-se um filme delicado, intenso, mas que foge da autocomiseração e do sensacionalismo. É interessante como o longa-metragem afronta corajosamente o atentado de 11 de setembro, ainda tão sentido pela sociedade americana. Ao final, Tão Forte e Tão Perto revela-se uma fábula sobre o luto, o crescimento e a aceitação da perda. 

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