sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Clássicos da Cinemateca - Se meu apartamento falasse


Movie-wise, there has never been anything like "The Apartment", love-wise, laugh-wise, or otherwise-wise! (Frase do cartaz original do filme.)
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Fran [prestes a chorar]: “Como pude ser tão burra? Você deve pensar: ela já deveria ter aprendido. Quando se está apaixonada por um homem casado, não se deve usar maquiagem.”
Às vezes parece difícil crescer numa empresa. Você se sente estagnado, sem falar na grande competitividade que existe entre os funcionários. No entanto, existem algumas maneiras de ganhar a simpatia do chefe, ser valorizado e, quem sabe, ser até promovido. Uma delas é trabalhar muito. Evidentemente, essa (exaustiva) alternativa não é garantia de sucesso. Se você vive esse dilema, a ideia inovadora de C.C. Baxter (Jack Lemmon) pode te ajudar. O moço descobriu uma nova forma de chamar a atenção do alto-escalão da empresa de seguros onde trabalha e se tornar indispensável na vida de algumas pessoas influentes. O solícito funcionário passou a ceder seu apartamento para que alguns dos seus colegas pudessem ter um lugar discreto e aconchegante para levar as amantes.
Claro que essa prática não é isenta de dores de cabeça. Você tem que lidar com a bagunça deixada no seu apartamento, com problemas de agendamento e revezamento entre os colegas, com o risco de dormir fora de casa quando alguém esquece de devolver a chave, com os olhares de reprovação do vizinho que acha que você é um mulherengo… Mas esses são os menores dos problemas. A situação se torna realmente grave quando você se apaixona pela amante do seu chefe e, mais grave ainda, quando ela tenta se suicidar no seu apartamento. Se você quiser saber se vale a pena fazer como C.C. Baxter, não deixe de ver Se Meu Apartamento Falasse.
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C.C. Baxter: “Eu costumava viver como Robinson Crusoé. Quero dizer… Como um náufrago no meio de 8 milhões de pessoas. Um dia eu vi uma pegada na areia e lá estava você.”
Em Se Meu Apartamento Falasse, o diretor e roteirista Billy Wilder trata (de uma maneira leve, mas crítica) a questão da ética no trabalho, mostrando como o sucesso no mundo corporativo está, muitas vezes, ligado à troca de favores. No entanto, o clássico de 1960 é, acima de tudo, a história de dois indivíduos desajustados, uma história de amor nada convencional. É interessante observar que Se Meu Apartamento Falasse é bastante diferente do hilário Quanto Mais Quente Melhor, imenso sucesso de Wilder, lançado apenas um ano antes. Se o clássico de 1959 é uma comédia de erros que conta com personagens travestidos, diálogos de duplo sentido e situações absurdas, o filme de 1960 é uma comédia dramática sentimental. Os dois filmes têm em comum a genialidade de Wilder, diálogos brilhantes e o talento de Jack Lemmon. 
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J.D. Sheldrake: “Você sai com uma garota algumas vezes, só para dar risadas, e ela já pensa que você vai se divorciar da sua esposa. Agora eu te pergunto: isso é justo?” 
C.C. Baxter: “Não senhor, é muito injusto… Especialmente com a sua esposa.”
Se Meu Apartamento Falasse é centrado em personagens cativantes e humanos, interpretados por grandes atores. Jack Lemmon, que dá vida ao protagonista, é o anti-herói por excelência. A aparência do ator (que não corresponde a do típico galã), seu incríveltimming cômico e sua expressividade lhe possibilitaram interpretar grandes papéis durante sua carreira e C.C. Baxter é, sem dúvida, um dos seus melhores trabalhos. Lemmon confere certa tristeza e melancolia ao personagem. Não se trata apenas do anti-herói engraçado, desajeitado e azarado. C.C. Baxter é também um homem de coração partido. Lemmon confere dignidade ao protagonista e, se rimos de suas desventuras, também nos compadecemos do seu drama.
O mesmo pode ser dito de Shirley MacLaine, que interpreta Fran e cria uma personagem tragicômica, uma suicida em potencial. A atriz comunica magistralmente o desamparo e vulnerabilidade de sua personagem. Talvez o maior charme de Se Meu Apartamento Falasseseja o de revelar, sob a aparente face de comédia, o drama desses indivíduos complexos. Fechando o triângulo amoroso, temos Fred MacMurray (como Jeff D. Sheldrake, chefe de C.C. e amante de Fran), galã e grande estrela da época, que é o perfeito contraponto de Jack Lemmon. 
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C.C. Baxter: “O seu espelhinho está quebrado.” 
Fran Kubelik: “Sim, eu sei. Eu gosto dele desse jeito. Eu me vejo como eu me sinto.” 
Sentimental, sem ser sentimentalista, Se Meu Apartemento Falasse se passa, em grande parte, entre quatro paredes, o que revela a intenção de Wilder de criar uma narrativa intimista. O diretor focaliza a construção dos personagens e a interação entre eles. A relação de Fran e C.C. é a alma do filme (muito em função da ótima química entre Lemmon e MacLaine, ambos indicados ao Oscar). Essa relação não é baseada em uma atração física, mas numa simpatia de almas. Os dois personagens são problemáticos: ela é apaixonada por um homem casado que nunca deixará a esposa; e ele tem que lidar com um amor não correspondido, a humilhante submissão ao chefe cafajeste e o desejo de ascensão na empresa. O belíssimo final do filme (Wilder é o mestre em finais geniais) é a prova da sensibilidade do diretor, que opta por sugerir qual será o futuro do casal, ao invés de explicitá-lo. Mesmo que não testemunhemos o esperado beijo, Se Meu Apartamento Falasse continua sendo um dos filmes mais românticos de Hollywood. Ganhador de cinco Oscars (Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Montagem, Melhor Roteiro e Melhor Direção de Arte), essa celebrada obra-prima é também prova da versatilidade de Wilder. Poucos filmes combinam com tanta maestria comédia, romance e drama.
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C.C. Baxter: “Você ouviu o que eu falei, Miss Kubelik? Eu absolutamente adoro você.” 
Fran Kubelik: “Cale a boca e dê as cartas.”

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Clássicos da Cinemateca - Gilda


 “Mame kissed a buyer from out of town /That kiss burned Chicago down / So you can put the blame on Mame, boys /  Put the blame on Mame.”
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Johnny Farrell: “Eu a odiava tanto que não conseguia tirá-la da minha cabeça por um só minuto!”
Nunca houve uma mulher como Gilda! Já dizia o pôster do filme de 1946, dirigido por Charles Vidor. Rita Hayworth, no auge da sua beleza, encarnou a personagem mais importante da sua carreira e uma das mais célebres femmes fatales da história do cinema. Se especializando nesse tipo de personagem, a atriz realizou outro clássico noir, no ano seguinte, A Dama de Shangai, dirigido e estrelado por Orson Welles, com quem a estrela hollywoodiana foi casada por cinco anos. A década de 40 foi o período de ouro da carreira da atriz, quando ela se firmou como um dos maiores símbolos sexuais de Hollywood. Foi, no entanto, Gilda que fez com que Hayworth se tornasse um verdadeiro mito. Hayworth se casou cinco vezes, sendo uma delas com o príncipe Aly Khan. Ela se tornou assim a primeira estrela de cinema a se tornar uma princesa (Grace Kelly é a mais famosa). Mas esse casamento, como todos os outros, não durou muito tempo. A atriz chegou a confessar certa vez: “Todos os homens que conheci se apaixonaram por Gilda e acordaram comigo”. 
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Johnny Farrell: “Estatísticas mostram que existem mais mulheres no mundo do que qualquer outra coisa. Exceto insetos”.
 Sem dúvida, Gilda possui algo a mais, algo que nem todos os filmes noirs apresentam. EmGilda, existe uma tensão sexual latente e sempre presente, tensão que permeia as relações do trio de protagonistas. Talvez pudéssemos afirmar que Gilda é um filme sobre desejo e repulsa. Claro que existe uma trama, envolvendo mistério e crime, mas essa trama é apimentada por uma atmosfera de puro erotismo. A antológica cena do semi-striptease de Gilda é apenas um exemplo de como o filme é altamente erótico sem, no entanto, infrigir os rígidos códigos de censura da época. O gesto da retirada da luva acaba por ser infinitamente mais sensual do que um completo striptease. Uma das qualidades do filme está justamente nesse jogo entre o que é revelado e o que é apenas sugerido. É o que está velado, é o que está subentendido nos diálogos enigmáticos e dúbios, nos comportamentos ambíguos dos protagonistas, que desperta a imaginação do espectador e faz desse clássico um exemplar tão instigante. 
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Gilda: “Eu não consigo nunca fechar meu zipper. Talvez isso queira dizer algo, não acha?”
Gilda se passa na Argentina. Johnny Farrell (Glenn Ford), um aventureiro americano de caráter duvidoso, começa a trabalhar para um sinistro dono de cassino e simpatizante nazista, Ballin Mundsun (George Macready). Para a surpresa de Johnny, a nova esposa do patrão é seu amor do passado, Gilda (Rita Hayworth). A partir de então, um triângulo amoroso se forma. A sinopse de Gilda lembra estranhamente Casablanca: um americano expatriado que reencontra a mulher com quem teve um caso no passado, em terras estrangeiras, com direito à presença de nazistas como no clássico de 1942, um plano de fuga e um cassino que muito lembra o Bar do Rick.
Gilda é um gêmeo perverso de Casablanca. O relacionamento de Johnny e Gilda não é movido por sentimentos nobres como o de Rick (Humphrey Bogart) e Ilsa (Ingrid Bergman). A dinâmica de amor e ódio que se estabelece entre os dois personagens do filme de 1946 é muito mais venal e doentia do que a relação do famoso casal de Casablanca. Gilda também não possui a doçura de Ilsa e não assume o papel de vítima das circunstâncias como a heroína interpretada por Ingrid Bergman. Gilda é uma mulher sexualmente agressiva, voluptuosa, perigosa e vampiresca, que desafia a noção clássica de heroína. 
DivulgaçãoBallin a Johnny: “Você ficaria surpreso de ouvir uma mulher cantando na minha casa”.
Gilda comanda não só o olhar do espectador, como o dos seus dois amantes. Como uma força da natureza, ela é o centro das atenções quando está em cena. A aparição da femme fatale é orquestrada magistralmente. Ela ocorre após mais de 15 minutos de projeção. Primeiro ouvimos a voz da personagem, depois vemos a reação de Johnny e Ballin à visão da musa e, aí sim, ela surge na tela, fazendo um movimento inesperado, jogando os cabelos para trás. Assim nasce o mito. Exuberante e sensual, a protagonista é também um mistério a ser desvendado. Ela talvez possa ser considerada como uma manifestação da fantasia e do imaginário masculinos. Afinal, como afirmou certa vez Rita Hayworth, não é possível ser Gilda 24 horas por dia.
Paradoxalmente, Gilda assume o papel de objeto sexual, mas também é uma personagem moderna, livre sexualmente, em uma época de extrema repressão sexual. A canção “Put the Blame on Mame” se tornou um grande sucesso graças à performance de Rayworth (dublada por Anita Ellis). A irônica letra da canção fala justamente da mulher vista como a causa de todos os males. Nos anos 40, o nome Gilda passou a ser sinônimo de “mulher selvagem”. Também foi o apelido dado à primeira bomba atômica jogada em Bikini Atoll, ilha usada para testes nucleares pelos norte-americanos. 
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Johnny a Ballin: “You must lead a gay life!”
Mas nem tudo é sobre Gilda. A relação entre Ballin e Johnny é, no mínimo, curiosa. Não são poucos os estudiosos e críticos que apontam certo homoerotismo no relacionamento extremamente próximo e ambíguo dos dois principais personagens masculinos. O primeiro indício desse provável homoerotismo ocorre no início do filme: Ballin está segurando um objeto fálico e Johnny exclama: "You must lead a gay life" (Você de levar uma vida gay/alegre). A utilização da palavra “gay”, que comporta duas significações, permite assim duas leituras. Tanto Charles Vidor quanto Glenn Ford afirmaram posteriormente que, durantes as filmagens, eles não cogitaram a hipótese de que os dois personagens pudessem ser homossexuais. No entanto, o subtexto gay e a relação potencialmente homoafetiva de Ballin e Johnny fazem com que o triângulo amoroso do filme seja ainda mais complexo e intrigante.
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Nunca houve uma mulher como Gilda!
Gilda é o filme mais célebre de Charles Vidor, diretor de origem húngara que, apesar de ter tido uma prolífica carreira nos Estados Unidos, é lembrado hoje em dia quase exclusivamente pelo clássico de 1946. A forma com que o filme aborda aspectos da sexualidade humana, a maneira provocativa com que ele lida com um triângulo amoroso não convencional e a ousada representação da femme fatale fazem de Gilda um exemplar único no cinema clássico americano. As qualidades do filme em termos de estilo se sobrepõem a uma trama pouco original. E nem mesmo o tradicional final feliz é capaz de obscurecer o caráter provocador desse clássico.