sábado, 19 de outubro de 2013

Clássicos da Cinemateca - O Cozinheiro, o Ladrão, Sua Mulher e o Amante

Try the cock, Albert. It's a delicacy, and you know where it's been.
His mother is a Roman Catholic, he's been imprisoned in South Africa, he's as black as the ace of spades and he probably drinks his own pee!
Peter Greenaway é artista plástico, escritor, cineasta e grande estudioso das artes em suas mais diversas formas. O versátil artista britânico é reconhecido por imprimir em suas obras cinematográficas referências à pintura flamenca e às obras renascentistas e barrocas. Seus filmes são marcados por certo preciosismo na composição cênica. Talvez por ser um exímio pintor, Greenaway demonstre, em suas obras para o cinema, grande habilidade no uso de cores, contrastes e iluminação. Considerado um cineasta elitista por alguns, gênio por outros, Greenaway consolidou, ao longo de mais de 50 anos de carreira, uma filmografia bastante interessante e rica, composta por filmes de ficção (curtas e longas-metragens) e documentários.
Os filmes de Peter Greenaway geralmente passam longe do circuito comercial e costumam ser classificados como “filmes de arte”. O diretor sempre flertou com o experimentalismo e muitas de suas obras de ficção não apresentam uma estrutura narrativa convencional. Controverso e assumidamente pretensioso, o cinema de Greenaway explora os limites da linguagem cinematográfica e instaura um diálogo fascinante entre o cinema, outras manifestações artísticas e diversas áreas do conhecimento humano.
O inquieto diretor é tido como um dos mais brilhantes expoentes do cinema britânico, ainda que não compartilhe da popularidade de cineastas contemporâneos, como David Lynch e Martin Scorsese. Dentre suas maiores realizações, encontram-se: O Cozinheiro, o Ladrão, Sua Mulher e o Amante (1989), Afogando em Números (1988), O Livro de Cabeceira (1996), O Contrato do Amor (1982). O último longa-metragem de ficção do diretor foi Goltzius and the Pelican Company (2012), ainda inédito no Brasil. Nos últimos anos, Greenaway tem se dedicado bastante à realização de instalações multimídias e exposições de arte. 
Looks like catfood for constipated French rabbits!
O Cozinheiro, o Ladrão, Sua Mulher e o Amante é uma das grandes obras-primas de Greenaway e o filme de maior sucesso do diretor. Trata-se de uma sátira brilhante e excêntrica, carregada de humor negro, sobre o exagero, o mau-gosto e a maldade humana. Filmado de maneira exuberante, excessivamente gráfica e luxuriosa, O Cozinheiro… se passa quase inteiramente em um sofisticado restaurante francês, chamado Le Hollandais.
Richard (Richard Bohringer), o chefe, é um gênio da cozinha, um verdadeiro artista gastronômico. Já o proprietário do restaurante, Albert Spica (Michael Gambon), é um um grande homem do crime (à la Poderoso Chefão), que frequenta todas as noites o Le Hollandais, na companhia de sua bela mulher Georgina (Helen Mirren) e uma corja de bajuladores. Enquanto faz seus discursos ácidos e impagáveis, Albert se descuida da esposa que acaba por se interessar por um dos clientes do lugar, o intelectual Michael (Alan Howard). Logo, eles iniciam um tórrido caso de amor. 
Circumcised mediocrity is screwing my wife!
Em O Cozinheiro…, Greenaway focaliza algumas das pulsões primárias do ser humano: o desejo sexual, a gula e a violência. O exagero e o grotesco fazem parte da suculenta sátira social realizada pelo cineasta e tais características são personalizadas em Albert, um personagem hiperbólico, monstruoso e desprezível. Na pele desse personagem cruel e falastrão, temos o ótimo ator irlandês Michael Gambon (o professor Dumbledore dos últimos filmes da franquia Harry Potter) em uma performance inesquecível. Certamente, Albert é uma das maiores encarnações do mal já vistas no cinema.
Mas não é apenas Gambon que se destaca no filme. Helen Mirren, atriz shakesperiana, famosa por interpretar personagens da nobreza britânica e ganhadora do Oscar em A Rainha (2006), surge belíssima em O Cozinheiro… e esbanja sensualidade ao encarnar a esposa infiel de Albert. A atriz inglesa brilha, sobretudo, por mostrar a transformação de sua personagem, cujo final é apoteótico. Mirren, por sinal, protagoniza tórridas cenas de sexo com o excelente Alan Howard. 
I think those Ethiopians enjoy starving. Keeps them thin and graceful.
Desson Howe, crítico do Washignton Post, disse, certa vez, sobre o filme: Greenaway “trata do assunto mais feio imaginável da maneira mais bela possível”. De fato, o filme poderia ser descrito como um verdadeiro “banquete visual”. Nesse banquete, Greenaway contou com a belíssima fotografia de Sacha Vierny, o primoroso trabalho de Ben Van Os e Jan Roelfs na direção de arte e figurinos assinados por ninguém menos que Jean-Paul Gautier. Greenaway abusa das cores fortes e das texturas. Cada cenário tem sua cor característica: o vermelho do salão, o branco do banheiro, o verde da cozinha. A variedade de cores é também visível nos figurinos dos personagens, que mudam magicamente quando eles trocam de cenários. Tudo é extremamente estilizado, barroco, rebuscado.
A maioria dos filmes de Greenaway caracteriza-se por certo distanciamento emocional. O Cozinheiro…, no entanto, é uma obra visceral. Roger Ebert, em sua análise do filme, atribuiu essa transformação ao sentimento de raiva do diretor, fruto de um descontentamento político. Alguns críticos e estudiosos viram no longa-metragem uma forte dimensão alegórica. O filme seria, assim, um protesto semivelado, uma parábola sobre a situação político-social do Reino Unido de Margaret Thatcher. Uma das interpretações propostas para o filme vê cada um dos quatro personagens principais como representações de entidades e segmentos distintos da sociedade britânica: o cozinheiro simbolizaria os funcionários publicos e os cidadãos obedientes; o ladrão, a arrogância, o autoritarismo e o poder de Margaret Thatcher; o amante, a oposição composta por intelectuais e esquerdistas; e a esposa, a própria pátria.
A obra-prima de Greenaway, no entanto, não se reduz a um único contexto político e nos oferece uma reflexão atemporal sobre as relações de poder, sobre a exploração do homem sobre o homem e sobre o lugar que a violência e a cultura ocupam em nossa sociedade. O Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante é um filme provocador, inteligente e tragicamente divertido. 
Could you cook him?

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Clássicos da Cinemateca - Uma mulher sob influência

“Todos nós nascemos loucos. Alguns permanecem.” Samuel Beckett
“Tornei-me insano, com longos intervalos de uma horrível sanidade.”  Edgar Allan Poe
John Cassavetes teve uma prolífica carreira como ator, tendo trabalhado em grandes filmes como Os Doze Condenados (1967) e O Bebê de Rosemary (1968). O galã de origem grega, no entanto, deixou sua maior marca no cinema como diretor e roteirista. Dizem, inclusive, que seus trabalhos como ator em filmes de outros diretores eram uma forma de financiar seus próprios projetos. Em ocasião de uma retrospectiva sobre o cineasta realizada em Nova York, neste ano, a New York Magazine afirmou que Cassavetes “pode ter sido o diretor americano mais influente dos últimos 50 anos”. Ainda que sua filmografia seja pouco conhecida do grande público, Cassavetes é considerado um ícone do cinema independente, um cineasta pioneiro e reverenciado pelos seus pares. Cassavetes chegou a realizar o raro feito de ter sido indicado a Oscars de atuação, direção e roteiro por trabalhos diferentes. O multitalentoso diretor/ator morreu ainda jovem, aos 59 anos, em 1989. No entanto, sua obra permanece viva e é objeto de estudo de muitos especialistas.
O cinema de Cassavetes é dominado por personagens complexos, cujos desejos e pulsões são difíceis de se compreender. O diretor sempre procurou trabalhar com atores que se entregassem inteiramente a seus papéis, sem se preocuparem com a própria imagem ou temerem o ridículo. Sua carreira é marcada por parcerias frutíferas com atores que demonstravam tais qualidades. Ele trabalhou, por exemplo, dez vezes com a esposa, Gena Rowlands, seis vezes com Peter Falk e cinco vezes com Ben Gazzara. Cassavetes  afirmou, certa vez, que o mais difícil para um cineasta era encontrar pessoas que quisessem realmente criar algo conjuntamente. Fazendo filmes de baixíssimo orçamento (às vezes financiados por ele mesmo), Cassavetes costumava escalar amigos para trabalharem em seus projetos, em troca de pouco dinheiro ou parte dos ganhos dos filmes nas bilheterias. Muitas vezes, as filmagens de seus longas-metragens eram interrompidas por falta de dinheiro e reiniciadas quando havia recursos disponíveis novamente.
"Todos os homens são doidos e, apesar das precauções, só diferem entre si em virtude das proporções." Nicolas Boileau
Cassavetes deixou, como cineasta, a marca de um estilo singular, que se diferenciava bastante do que era realizado em Hollywood. O diretor gostava de filmar com a câmera na mão, com o auxílio de luz natural, imprimindo um tom de documentário a suas obras e buscando a espontaneidade de seus atores. Por essa razão, o diretor é geralmente apontado como um dos grandes expoentes, nos Estados Unidos, do cinéma verité, movimento cinematográfico cuja criação é atribuída ao francês Jean Rouch. A improvisação e o desejo de observação da realidade marcam esse estilo. O improviso, de fato, fazia parte do método de criação de Cassavetes. No entanto, ao contrário do que muitos acreditam, seus filmes eram roteirizados (com a exceção de Sombras, de 1959). Esse mal entendido deve-se, sobretudo, à liberdade que Cassavetes conferia aos atores, que podiam imprimir suas próprias ideias e interpretações em suas performances. Ainda que houvesse script e diálogos pré-determinados para guiarem os atores, a intuição e o instinto dos mesmos prevaleciam na hora das filmagens.
Cassavetes é um dos maiores exemplos de um cineasta que nunca comprometeu seus valores artísticos e estéticos para que seus filmes fossem produzidos. Ele nunca cedeu ao cinema comercial, nunca permitiu que estúdios, executivos e investidores ditassem suas escolhas artísticas e interferissem no seu trabalho. Ele chegou a hipotecar sua casa para produzir Uma Mulher Sob Influência (1974), não precisando assim se submeter às vontades de um investidor qualquer. Por essas razões, Cassavetes é um dos maiores nomes do cinema independente americano. Dentre as maiores realizações do cineasta encontram-se A Morte de um Apostador Chinês (1976), Noite de Estreia (1977), Faces (1968), Glória (1980) e Amantes (1984). Uma Mulher Sob Influência é tido como uma das suas maiores obras-primas. 
“Eu não sou louco. É o mundo que não entende minha lucidez...” Raul Seixas
A gênese de Uma Mulher Sob Influência é bastante curiosa. Gena Rowlands havia dito ao marido que queria atuar em uma peça que tratasse das dificuldades que enfrenta a mulher moderna. A partir desse desejo da esposa, Cassavetes escreveu o material para a peça. A atriz, no entanto, disse que seria impossível atuar várias vezes por semana em um projeto tão intenso e desgastante. O diretor resolveu, então, adaptar a história para o cinema. Iniciou-se, assim, uma verdadeira epopeia para arrecadar dinheiro para a realização do filme. Segundo o cineasta, ninguém queria ver uma mulher louca de meia idade no cinema.
Sem investimentos dos estúdios, Cassavetes hipotecou sua casa e fez empréstimos com amigos, dentre eles, Peter Falk (famoso por interpretar Columbo na televisão). Falk havia amado o roteiro e queria não só investir, mas também atuar no longa-metragem. A equipe do filme consistia, em sua maioria, de estudantes do American Film Institute. Além de atuar, Rowlands era responsável pela própria maquiagem e penteado. Após a finalização do filme, o novo desafio foi encontrar uma forma de distribuí-lo.
Sem conseguir um distribuidor, Cassavetes viu-se obrigado a contatar pessoalmente proprietários de cinemas e pedir para que exibissem seu filme. Segundo Jeff Lipsky, na época um universitário que foi chamado para ajudar no lançamento do longa-metragem, “foi a primeira vez na história do cinema que um filme independente foi distribuído sem o uso de um sistema nacional de sub-distribuidores”. Cassavetes levou também o longa-metragem a algumas universidades, onde organizou discussões com os alunos. O filme chegou também a participar de alguns festivais, como o de San Sebastián.
Nomes famosos da indústria cinematográfica se manifestaram a favor do filme. Martin Scorsese, que era um grande fã de Cassavetes, disse que retiraria o seu Alice não mora mais aqui (1974) de um grande festival de Nova York, se Uma Mulher Sob Influência não fosse incluído no mesmo. O ator Richard Dreyfuss também fez campanha pelo filme na televisão americana, qualificando-o como incrível, perturbador, brilhante e triste. Ele chegou a declarar que ficou “louco” com o filme e que vomitou depois de assisti-lo. Aos poucos, o filme foi ganhando destaque e chegou a ser indicado ao Oscar de Melhor Atriz e Direção.
“Dizem que sou louco por pensar assim / Se eu sou muito louco por eu ser feliz / Mas louco é quem me diz / E não é feliz, não é feliz” Arnaldo Baptista / Rita Lee
Uma Mulher Sob Influência focaliza o cotidiano dramático de uma família norte-americana. Mabel Longhetti (Gena Rowlands) é dona de casa, esposa e mãe. Seu marido Nick (Peter Falk) é o líder de um grupo de operários, um sujeito expansivo, rude e agregador. Mabel se esforça para agradar o marido, para ser uma boa mãe, para lidar com as pessoas ao seu redor. No entanto, ela não é uma pessoa como as outras. Em meio aos estranhos maneirismos de Mabel, ao seu comportamento errático, à sua maneira nada convencional de se expressar, é possível visualizar uma mulher desesperada, às voltas com as obrigações de uma vida doméstica talvez indesejada. Louca? Eis a questão. Qual o limite de sanidade? Onde começa a loucura? O filme focaliza o antes e o depois da internação de Mabel numa clínica psiquiátrica. A incompreensão, a violência e também um extremo amor fazem parte da vida dessa família tão disfuncional.
Mabel é o coração do filme. Insegura, nervosa, sensível, a personagem parece viver à beira do abismo da própria sanidade. Em meio a tantos papéis que deve ocupar, o de mãe, o de dona de casa, o de esposa, o de anfitriã, ela parece perder sua própria identidade. Nick insiste para que ela apenas seja ela mesma. Mas será que ela sabe como? Nick, por sinal, também tem seus problemas. Ele não sabe lidar com a esposa, adotando atitudes extremas, às vezes agressivas, às vezes plenas de afeto e esperança. Por vezes, ele também parece lutar contra insanidade. Cassavetes retrata diversas camadas de emoção e uma variedade enorme de sentimentos. O filme parece transbordar a ficção e os personagens, tão complexos, tão crus, parecem se libertar do seu estatuto de personagens.
“Sou louco porque vivo em um mundo que não merece minha lucidez.” Bob Marley
Na pele de Mabel, temos uma Gena Rowlands soberba. Nenhum elogio é excessivo para descrever o que ela faz em cena. Nunca no cinema, a loucura foi retratada de uma forma tão pungente, tão visceral. A composição da atriz é rica em detalhes e nuances. O sofrimento, a incapacidade da personagem de se relacionar e se expressar, sua inadequação se tornam tangíveis graças ao desempenho impressionante da atriz. Ao lado dela, Peter Falk nos oferece uma das melhores interpretações da sua carreira e é o contraponto perfeito para Rowlands. Com muita sensibilidade, o ator comunica a impotência de seu personagem e suas limitações. Nick é um ser humano falho, mas completamente apaixonado pela esposa.
Uma Mulher Sob Influência é um dos filmes mais interessantes a estudar a estrutura familiar e a loucura. Brilhantemente dirigido e atuado, esta obra-prima de John Cassavetes trata de uma maneira comovente e sensível a complexidade do ser humano e das relações de amor. 
"A loucura é vizinha da mais cruel sensatez. Engulo a loucura porque ela me alucina calmamente." Clarice Lispector