segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Clássicos da Cinemateca - O Que Terá Acontecido a Baby Jane?


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Inimigas na vida real, Bette Davis e Joan Crawford estrelam O Que Terá Acontecido a Baby Jane?
Nesta edição da Cinemateca, falaremos sobre mais um clássico que, a exemplo de Sob o Domínio do Mal e O Milagre de Anne Sullivan, completa 50 anos em 2012. Trata-se de O Que Terá Acontecido a Baby Jane? (What Ever Happened to Baby Jane?, 1962), thriller psicológico com toques de terror cujo imenso sucesso contribuiu para a criação de um subgênero muito popular nos anos 60. O “psycho-biddy”, expressão pela qual tal subgênero do terror ficou conhecido, se caracterizava por retratar mulheres mais velhas atravessando surtos psicóticos ou em perigo iminente, sob a ameaça de algum mal. O fênomeno do “psycho-biddy” se deve bastante ao desejo e à necessidade de grandes atrizes de continuar a trabalhar após uma certa idade. Tais atrizes que brilharam no auge de suas carreiras como mocinhas não tinham a mesma facilidade de encontrar bons papéis depois dos 40, algo que ocorre ainda hoje. Grandes estrelas da Era de Ouro de Hollywood tiveram, em tais filmes de suspense/terror, seus derradeiros papéis de protagonistas. 
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Joan Crawford tinha 57 anos e Bette Davis 54 na época do lançamento do filme.
O Que Terá Acontecido a Baby Jane? lançou moda e fez escola. A ele se seguiram obras comoCom a Maldade na Alma (1964), Almas Mortas (1964), A Dama Enjaulada (1964), Fanatismo Macabro (1965), Nas Garras Do Ódio (1965), Espetáculo de Sangue (1967), A Mansão dos Desaparecidos (1969) e Obsessão Sinistra (1971). A febre do “psycho-biddy” explica por que tais filmes de títulos sugestivos foram estrelados por grandes damas do cinema hollywoodiano, como Tallulah Bankhead, Olivia de Havilland, Shelley Winters, Bette Davis e Joan Crawford. As duas últimas, protagonistas de O Que Terá Acontecido a Baby Jane?,tiveram suas carreiras revitalizadas justamente após o clássico de 1962. O sucesso do filme renovou o interesse do público por ambas as atrizes que outrora foram as maiores estrelas de Hollywood. A partir de então, Davis e Crawford se tornaran rainhas do terror/suspense e apareceram em diversos filmes desse gênero.
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Bette Davis recebeu sua décima e última indicação ao Oscar por O Que Terá Acontecido a Baby Jane?
Produzido e dirigido por Robert Aldrich e baseado no romance de mesmo nome de Henry Farrell, O Que Terá Acontecido a Baby Jane? tem como um de seus maiores trunfos o fato de conseguir realizar o que parecia inimaginável até então: reunir num mesmo set de filmagem duas inimigas mortais e assumidas, Bette Davis e Joan Crawford. A rivalidade entre as duas atrizes é a mais célebre do cinema clássico. O fato de representarem no longa-metragem personagens que se odeiam não poderia deixar de atrair ainda mais a atenção e a curiosidade do público e da mídia. O sucesso de crítica e de bilheteria do filme fez com que Aldrich propusesse a escalação das duas atrizes para um novo projeto. Davis e Crawford seriam primas em Com a Maldade na Alma (1964), filme também baseado numa obra de Henry Farrell. No entanto, o diretor não conseguiu repetir a proeza de 1962. A versão oficial diz que Joan Crawford teve que abandonar o projeto por conta de prolemas de saúde. Entretanto, existem boatos de que Davis teria conseguido o afastamento da rival, que foi posteriormente substituída por Olivia de Havilland, amiga de Davis. O filme de 1964 também foi um grande sucesso, tendo sido indicado a sete Oscars.
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A bela fotografia de Ernest Haller é um dos pontos fortes do clássico.
Competitivas, vaidosas, talentosas e temperamentais, Davis e Crawford provavelmente tinham muito mais em comum do que gostariam de admitir. Crawford, três anos mais velha que a colega, iniciou a carreira em 1925, ainda no cinema mudo. Davis estreou nas telonas seis anos mais tarde. No currículo, ambas têm diversos trabalhos consagrados. Crawford brilhou em Grande Hotel (1932), Almas em Suplício (1945), Precipícios D’Alma (1952) e Johnny Guitar(1954). Davis está soberba em Escravos do Desejo (1934), Jezebel (1938), Pérfida (1941) e A Malvada (1950), para citar apenas alguns títulos. Davis foi indicada dez vezes ao Oscar, tendo levado a estatueta em duas ocasiões. Crawford foi indicada três vezes, tendo sido premiada uma vez. As vidas pessoal e profissional das duas atrizes foram marcadas por sucessos, tropeços e escândalos. Uma coincidência impressiona: as filhas das duas escreveram livros nada lisongeiros sobre suas respectivas mães, retratando a crueldade das mesmas e as dificuldades de relacionamento em casa. O livro de Christina Crawford, Mamãezinha Querida, foi transposto para o cinema em 1981, com Faye Dunaway no papel de Crawford.
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Blanche (Joan Crawford) descobrindo o prato especial preparado por Jane (Davis).
Em O Que Terá Acontecido a Baby Jane?, Bette Davis é Baby Jane Hudson, antiga estrela mirim de vaudeville que, ao crescer, tem que lidar com o declínio de sua carreira e o consequente ostracismo. Joan Crawford, por sua vez, dá vida a Blanche Hudson. Blanche, ao contrário da irmã Jane, era um patinho feio quando criança e sofria com o menosprezo da mãe e da irmã famosa. Depois de crescida, a moça deu a volta por cima e se tornou uma estrela de Hollywood. Após um misterioso acidente de carro, Blanche fica paralítica e se afasta do show business, permanecendo sob os “cuidados” de Jane, cada vez mais desequilibrada. Normalmente apontado como o melhor “psycho-biddy” já realizado, O Que Terá Acontecido a Baby Jane? contém um série de momentos memoráveis e, por vezes, grotescos e assustadores, como a cena em que Jane serve um prato “pra lá de especial” para a irmã inválida, outra em que Blanche sai da cadeira de rodas para tentar pedir socorro e mesmo o impactante final à beira-mar. Por fim, o que dizer da inesquecível e bizarra cena em que Bette Davis canta I've Written a Letter to Daddy”(assista ao vídeo)
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As duas versões de Baby Jane, interpretadas por Julie Allred e Bette Davis.
Várias histórias giram em torno dos bastidores do filme. Dizem, por exemplo, que Bette Davis pediu para que fosse instalada uma máquina de Coca-Cola no set, para provocar Crawford que fazia, na época, parte do conselho de diretores da concorrente Pepsi. Outra anedota, talvez um pouco fantasiosa, diz que durante uma das cenas de violência, Davis chuta Crawford na cabeça, o que  resultou em um ferimento que necessitou de pontos. Em retaliação, Crawford teria colocado pesos em seus bolsos para dificultar a vida de Davis na cena que esta fosse arrastá-la pelo chão.
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Bette Davis canta e dança em O Que Terá Acontecido a Baby Jane?
Bette Davis foi indicada ao Oscar de Melhor Atriz pelo seu trabalho em O Que Terá Acontecido a Baby Jane?, enquanto Joan Crawford foi esnobada pela premiação. Obviamente, Crawford não ficou nada feliz com isso, ainda mais porque Davis tinha a chance de se tornar a atriz mais premiada da história do Oscar naquele ano. Crawford, então, contatou as outras indicadas na categoria, se oferecendo para receber a estueta caso elas não pudessem comparecer à cerimônia. Efetivamente, Anne Bancroft não pôde estar presente na premiação e acabou se sagrando vitoriosa por O Milagre de Anne Sullivan. Como combinado, Crawford foi receber o Oscar no lugar de Bancroft e reza a lenda que ela fez questão de passar por Davis e dizer: “Com licença, eu tenho um Oscar para receber.”
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A maquiagem extremamente carregada é uma das marcas da caracterização de Davis.
Apesar de não figurar no panteão dos grandes diretores, pelo menos para o grande público, Robert Aldrich teve uma carreira bastante interessante, tendo se revelado particularmente habilidoso e versátil no cinema de gênero. Em seu currículo, encontramos o western, com Vera Cruz (1954); o filme noir, com A Morte num Beijo (Kiss Me Deadly, 1955); o filme de guerra, com Os Doze Condenados (1967); a comédia de ação, com Golpe Baixo (1974); e o filme policial com Crime e Paixão (Hustle, 1975). O Que Terá Acontecido a Baby Jane? é um dos filmes mais conhecidos da filmografia de Aldrich. Nele, o cineasta combina o assustador, o grotesco, o humor negro, o melodrama e o suspense de forma magistral, realçando o pathose a violência presentes na relação tortuosa de duas irmãs, alimentada pela inveja, pela dependência e pela mágoa. 
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A cena final é uma das mais emocionantes do filme.
O Que Terá Acontecido a Baby Jane? é um espetáculo inusitado, onde brilham Bette Davis com sua performance deliciosamente caricatural e Joan Crawford surpreendentemente comedida e sensível. O clássico de 1962 é considerado o último grande trabalho de Joan Crawford, que veio a falecer em 1977. Os últimos anos de sua carreira foram marcadas por bombas. Bette Davis viveu bem mais tempo e realizou pelo menos mais um belo filme, As Baleias de Agosto (1987). O Que Terá Acontecido a Baby Jane? nos oferece a oportunidade de assistir a dois dos maiores ícones do cinema clássico se degladiando em cena. Mas o filme não se resume a isso, sendo capaz de causar impacto e estranhamento ainda hoje. O filme foi indicado a cinco Oscars (Melhor Atriz – Bette Davis, Melhor Ator Coadjuvante – Victor Buono, Melhor Fotografia e Melhor Som), tendo levado o prêmio de Melhor Figurino (Preto e Branco).

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Clássicos da Cinemateca - Sob o Domínio do Mal (1962)


Why don't you pass the time by playing a little solitaire?
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Angela Lansbury e Laurence Harvey são mãe e filho em Sob o Domínio do Mal (1962).
Há quase 50 anos, no dia 24 de outubro de 1962, estreava em território americano um dosthrillers políticos mais impactantes da história do cinema hollywoodiano. The Manchurian Candidate ("O Candidato da Manchúria"), que ganhou no Brasil o eloquente título Sob o Domínio do Mal, é o quinto longa-metragem realizado por John Frankenheimer. Em 2004, o diretor Jonathan Demme (O Silêncio dos Inocentes) realizou um remake estrelado por Meryl Streep e Denzel Washington.
The Manchurian Candidate é a adaptação do romance de mesmo nome do escritor americano Richard Condon, publicado em 1959. O roteiro do longa-metragem foi escrito por um dos produtores do filme, o famoso dramaturgo George Axelroy, autor de várias peças de sucesso na Broadway e responsável pela adaptação do clássico Bonequinha de Luxo (1961). Sob o Domínio do Mal se passa em plena Guerra Fria e retrata brilhantemente a atmosfera de tensão, paranoia e medo que caracterizou esse período.
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Lansbury tinha 36 anos quando fez o filme, três a mais que Laurence Harvey que interpretou seu filho.
O longa-metragem fala de conspiração internacional, assassinato, comunismo, macarthismo e intriga política em uma época em que tais questões eram consideradas bastante delicadas. Deve-se enfatizar também que, em 1962, a Guerra Fria estava longe de ter um fim. Sob o Domínio do Mal foi proibido em diversos países que faziam parte da chamada Cortina de Ferro, como Polônia, Tchecoslováquia, Hungria, Romênia e Bulgária e até mesmo de alguns países considerados neutros, como Finlândia e Suécia. Na maioria desses países, o filme só foi lançado em 1993, após o colapso da União Soviética.
A obra-prima de Frankenheimer de certa forma antecipa a obsessão do povo americano por teorias conspiratórias nos anos 60 e 70. Devido ao temor extremo do crescimento do comunismo dentro dos Estados Unidos, várias dessas teorias, por vezes, pouco verossímeis, eram levadas bastante a sério. O Instituto Pavlov, mencionado no filme, é uma referência ao famoso fisiologista russo Ivan Pavlov, ganhador do prêmio Nobel em 1904. Pavlov estudou o papel do condicionamento na psicologia do comportamento. O condicionamento clássico, desenvolvido pelo fisiologista, explica a associação de um estímulo a outro. O trabalho e as pesquisas de Pavlov sem dúvida serviram de fonte de inspiração para o autor Richard Condon criar a “lavagem cerebral” retratada em sua obra.
 
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Frank Sinatra dizia que sua melhor performance vinha sempre no primeiro take.
Sob o Domínio do Mal contém influências de vários gêneros como o terror, o melodrama, o filme de guerra e a ficção científica. O thriller é centrado na figura do Sargento Raymond Shaw (Laurence Harvey), um herói americano da Guerra da Coreia, capturado com alguns de seus comandados por um grupo de comunistas (soviéticos e chineses) e programado para ser uma máquina de matar, um assassino sem culpa e sem lembranças de seus crimes. Os eventos que ocorreram no centro de condicionamento comunista foram apagados da memória dos soldados e, ao retornarem aos Estados Unidos, cada um segue o seu caminho. O Sargento Shaw, agora um “agente” comunista infiltrado, é premiado com uma medalha de honra e recepcionado por sua controladora e possessiva mãe, Mrs. Eleanor Iselin (Angela Lansbury). O Major Ben Marco (Frank Sinatra), um dos capturados ao lado do sargento, começa a desconfiar que algo está errado quando passa a ter um recorrente e perturbador pesadelo. A partir de então, ele passa a investigar Shaw.
Um dos mitos que giram em torno do filme diz respeito a sua retirada dos cinemas e seu subsequente “desaparecimento” midiático após o assassinato do presidente americano John F. Kennedy, em novembro de 1963. Muitos acreditam que o filme tenha de alguma forma inspirado o crime e que Lee Harvey Oswald, assassino de JFK, a exemplo do protagonista do filme de Frankenheimer, tenha sido “condicionado” ou passado por algum tipo de lavagem cerebral. A existência de uma relação entre o assassinato do presidente e os acontecimentos do filme provavelmente nunca será comprovada, mas a associação do longa-metragem à tragédia de 1963 faz com que a obra ganhe contornos ainda mais perturbadores e sombrios.
 
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O ator Laurence Harvey nasceu na Lituânia.
Contrariamente ao que se acredita, o filme não foi tirado completamente de circulação após 1963, tendo sido exibido na televisão americana em quatro ocasiões até 1975, o que não deixa de ser um número estranhamente pequeno para um filme lançado naquela época. Ao que tudo indica, houve certo descaso na distribuição do filme, cujos direitos pertenciam a Frank Sinatra.
Sob o Domínio do Mal é considerado a grande obra-prima de um dos maiores diretores hollywoodianos da metade do século 20, John Frankenheimer. Ainda que pouco lembrado e celebrado, o cineasta foi uma das mentes criativas mais inovadoras e importantes da televisão e do cinema americanos. Frankenheimer teve uma prolífica e bem sucedida carreira na televisão norte-americana. Ele dirigiu mais de 140 episódios de diversos seriados como Studio One (1948) e Playhouse 90 (1956). Essa última foi uma série de grande sucesso, inicialmente  transmitida ao vivo, o que exigia uma habilidade única do diretor. Um dos episódios mais célebres é The Comedian, estrelado por Michey Rooney.
 
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John Frankenheimer é famoso por seus enquadramentos peculiares.
As séries ao vivo eram comuns na TV americana dos anos 50 e se assemelhavam a peças filmadas. Frankenheimer revolucionou a maneira de se fazer televisão ao desvinculá-la da linguagem teatral, introduzindo uma multiplicidade de câmeras e uma maior movimentação das mesmas, utilizando close-ups e realizando um trabalho refinado e rápido de edição. É notória a importância da televisão na obra cinematográfica de Frankenheimer. Em muitos de seus filmes, a televisão cumpre um papel importante como difusora de notícias de interesse público e modeladora de opiniões.
Famoso pelo uso de enquadramentos e ângulos pouco usuais (algo que pode ser apreciado em Sob o Domínio do Mal), John Frankenheimer se notabilizou sobretudo por filmes de ação, suspense e espionagem. Dentre suas obras mais conhecidas e elogiadas estão: O Homem de Alcatraz (1962), Sete Dias de Maio (1964), O Trem (1965), O Segundo Rosto (1966), Grand Prix(1966), The Iceman Cometh (1973) Operação França 2 (1975), Domingo Negro (1977) e Ronin(1998). A filmografia de Frankenheimer conta também com alguns tropeços, dos quais A Ilha do Dr. Moreau (1996) merece destaque. A década de 80 é normalmente vista como um período “negro” de sua carreira. Ainda que Frankenheimer tenha sido um cineasta essencial dos anos 60 e 70, ele nunca foi indicado ao Oscar.
 
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John Frankenheimer (1930-2002) teve uma sólida carreira tanto no cinema, quanto na televisão.
Sob o Domínio do Mal contém alguns dos momentos mais célebres da filmografia de Frankenheimer, como a impactante sequência inicial do sonho e a cena final de inspiração hitchcockiana, em que Shaw deve assassinar um líder político. O filme conta ainda com um elenco estelar, liderado pelo astro britânico Laurence Harvey (brilhante como o alienado e complexado Raymond Shaw) e Frank Sinatra. A estrela de Psicose (1960), Janet Leigh, faz uma pequena e eficiente participação como o interesse amoroso de Sinatra. Os atores protagonizam uma das cenas mais bizarras do filme. Nela, vemos uma estranha conversa “codificada” entre o Major Marco (Sinatra) e Eugenie Rose (Leigh), a bordo de um trem, que nos permite acreditar que a moça possa ser também uma agente, apesar da narrativa não se enveredar por esse caminho.
Não há como não mencionar a performance assustadora e inesquecível de Angela Lansbury, como a monstruosa e manipuladora Mrs. Iselin, considerada uma das maiores vilãs do cinema. Lansbury foi indicada ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante pelo papel. Se no romance de Condon a relação de Mrs. Iselin com seu filho é claramente incestuosa, no filme de Frankenheimer, o incesto é mostrado de maneira mais sutil e representado pelo beijo que a mãe dá no filho já no final da trama.
 
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Mrs. Iselin está na lista dos maiores vilões do cinema feita pelo American Film Institute.
Além de ser importante sob o ponto de vista histórico, por refletir muitas das ideologias, crenças e medos da Guerra Fria, Sob o Domínio do Mal representa o melhor do estilo de John Frankenheimer, um diretor que teve uma influência ímpar principalmente no cinema de ação/suspense e espionagem. Esse grande clássico merece ser bastante celebrado no ano em que completa seu cinquentenário.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Clássicos da Cinemateca - Chinatown (1974)


"Forget it, Jake, it's Chinatown."
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Jack Nicholson dá vida a J.J. Gittes em Chinatown (1974).
Em 1968, o diretor franco-polonês Roman Polanski realizou seu primeiro filme hollywoodiano, a obra-prima do suspense e terror O Bebê de Rosemary. Em agosto de 1969, sua esposa, a atriz Sharon Tate, foi assassinada brutalmente, em Los Angeles, por membros da Família Manson. Quatro anos após a tragédia, Polanski retornou a Los Angeles para dirigir seu segundo e último filme em solo norte-americano, Chinatown, considerado uma de suas obras mais importantes. O cineasta se viu impedido de voltar a trabalhar nos Estados Unidos devido a uma acusação de assédio sexual contra uma adolescente de 13 anos, que teria ocorrido em 1977, também em Los Angeles.
Chinatown combina romance, intriga policial e tragédia de forma magistral. Na Los Angeles dos anos 30, J.J. Gittes (Jack Nicholson), um detetive particular especializado em casos de adultério, é procurado por uma mulher (Diane Ladd), que se identifica como Evelyn Mulwray e pede que seu marido Hollis seja investigado por conta de uma provável traição. Hollis Mulwray (Darrell Zwerling) era o engenheiro chefe do departamento de água e energia da cidade. Após o detetive fotografar o seu alvo com uma jovem misteriosa e o caso se tornar público, Gittes descobre que não foi procurado pela verdadeira Mrs. Mulwray (Faye Dunaway) e, sim, por uma impostora. Logo depois, Mr. Mulwray é encontrado morto. A partir de então, o protagonista se vê em meio a uma intriga que envolve assassinato, corrupção e incesto.
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John Huston e Jack Nicholson em cena do filme.
A trama do filme é parcialmente inspirada no rompimento da barragem de St. Francis em Los Angeles em 1928, trágico acidente que matou aproximadamente 450 pessoas, um dos maiores desastres da história da cidade. Diz-se que o personagem Hollis Mulwray é, por sua vez, inspirado em William Mulholland, engenheiro que idealizou a construção. No filme, Mulwray se opõe à contrução de uma nova barragem por razões de segurança, uma vez que a anterior entrou em colapso, resultando na morte de centenas de pessoas, uma referência à catástrofe de 1928. O nome do vilão do filme também nos remete à inundação: Noah (vivido por John Huston) seria uma referência a Noé, personagem bíblico que enfrentou o dilúvio.
Chinatown foi concebido como a primeira parte de uma trilogia sobre a corrupção no desenvolvimento de Los Angeles. A série seria protagonizada pelo detetive particular Jake Gittes, criado especialmente para Jack Nicholson. O segundo filme, A Chave do Enigma (The Two Jakes), foi realizado em 1990. O próprio Nicholson dirigiu essa continuação, filme em que Gittes deve desvendar um enigma envolvendo uma companhia de gás. O longa-metragem, no entanto, não repetiu o sucesso de seu predecessor e foi um fracasso de bilheteria e crítica, o que desestimulou a realização do último volume da trilogia, que se chamaria Cloverleaf.
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Roman Polanski e Jack Nicholson nos bastidores do filme.
Chinatown é geralmente descrito como um filme neo-noir. O termo “filme noir” é de origem francesa e remonta aos anos 1930. O cinema noir se desenvolveu sobretudo nos Estados Unidos e teve seu auge e apogeu nos anos 40 e 50, com filmes como O Falcão Maltês (1941),Laura (1944), Pacto de Sangue (1944) e A Marca da Maldade (1958). Ainda que contestado, o termo neo-noir é usado para se referir a filmes pós-anos 60, que incorporam  elementos do cinema noir de forma modernizada e/ou estilizada, se apropriando de diferentes temas e utilizando novas técnicas e tecnologias. Chinatown compartilha muitas características do gênero: a intriga gira em torno de um crime ou um conjunto de crimes; encontram-se personagens típicos, como o investigador, o policial, a femme fatale, o bandido, entre outros; a narrativa é dominada por personagens dúbios, sombrios e por um clima de suspeita, perigo, mistério e pessimismo; e a ação se passa sobretudo durante a noite.
Chinatown foi indicado a 11 Oscars, tendo levado uma única estatueta, a de Melhor Roteiro Original. O roteiro, de autoria de Robert Towne, é celebrado por muitos especialistas, como um dos melhores de todos os tempos. O roteirista tinha Jack Nicholson em mente quando criou o icônico personagem de Jake Gittes. Quando Roman Polanski embarcou no projeto, Towne já havia dedicado um longo período na escritura do roteiro que, originalmente, tinha mais de 180 páginas. Polanski tomou conhecimento do script através do próprio Nicholson, com quem o diretor ansiava trabalhar. O produtor Robert Evans aprovava a ideia de que um diretor europeu assumisse a direção do longa-metragem, já que acreditava que uma visão de fora conferiria um ar mais cínico e sombrio à produção. 
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Faye Dunaway foi indicada pela segunda vez ao Oscar por sua atuação em Chinatown.
Por ter perdido, alguns anos antes, sua esposa, de maneira brutal, também em Los Angeles, Polanski estava inicialmente relutante em se ligar ao projeto. Posteriormente, o diretor afirmou que o final sombrio do filme se deve muito ao seu próprio desespero após o assassinato de Sharon Tate. Esse final foi, inclusive, um dos motivos de maior debate entre o diretor e o roteirista. Robert Towne pretendia dar um final feliz à narrativa. No entanto, durante a pré-produção e filmagens, Towne e Polanski discutiram longamente sobre essa questão, já que o cineasta defendia um final trágico para a história. 
Para Polanski, o fim em que os bons triunfariam e os maus seriam punidos prejudicaria a originalidade da história. O diretor acabou por ganhar a discussão e sua vontade prevaleceu. Polanski imaginava um desfecho em que grande parte do elenco estivesse em cena, como ocorre normalmente nas óperas. O final foi escrito em dois dias, com o auxílio de Jack Nicholson para os diálogos. O cineasta também fez construir o cenário do bairro chinês para a sequência, já que não concordava com o fato de que o filme, apesar do título, não retratasse o bairro (no script original, nenhuma cena se passava efetivamente em Chinatown). Vinte e cinco anos após o lançamento do filme, Towne deu o braço a torcer e declarou que o cineasta estava certo quanto à escolha do final. 
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Jack Nicholson tinha 36 anos e Faye Dunaway 32 na época das filmagens.
No entanto, não foi somente a decisão sobre o final da história que causou atrito entre o roteirista e o diretor. Roman Polanski teria exigido que Towne reescrevesse todo o script, o que teria provocado acaloradas discussões. Com a intervenção de Polanski, parte dos personagens foi suprimida e a ação foi simplificada. A narração em off do personagem Jake Gittes, presente no script, foi eliminada por Polanski para que o público tivesse acesso às pistas e informações à medida que o protagonista as conhecesse.
Seguindo a tradição das tramas de detetive do escritor Raymond Chandler, Polanski filmou a história sob a perspectiva do protagonista. O diretor afirmou, na edição de dezembro de 1974 da revista L’Express, que sua primeira missão no projeto consistiu justamente em fazer com que a narrativa adotasse a perspectiva de Gittes, o que conferiu à mesma uma atmosfera similar à das obras de Chandler ou Dashiel Hammett, escritas em primeira pessoa. Segundo Polanski, o espectador deveria ter a impressão de viver as aventuras do detetive particular, ao lado deste, como se fosse uma testemunha invisível de tudo o que se passasse com o herói. No filme, Polanski não abandona jamais seu protagonista e posiciona, constantemente, a câmera por detrás dos ombros de Gittes, redobrando a impressão de que o espectador é um observador quase indiscreto.
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Segundo boatos, a relação de Faye Dunaway e Roman Polanski era bastante complicada.
Além do celebrado roteiro e da direção primorosa, Chinatown é reconhecido também pelas inesquecíveis performances de seu trio de atores principais: Jack Nicholson, Faye Dunaway e John Huston (os dois primeiros indicados ao Oscar). Huston, que talvez seja mais conhecido como o diretor das obras-primas O Falcão Maltês (1941) e O Tesouro de Sierra Madre (1948), interpreta um dos vilões mais odiosos do cinema em Chinatown. Seu Noah Cross está em 16° na lista dos melhores vilões do cinema do American Film Institute. Uma curiosidade é o fato de que Nicholson havia iniciado, na época, seu longo relacionamento com Angelica Huston, filha do colega John Huston. Diz-se que Nicholson se sentia bastante desconfortável com a situação. Ironicamente, em uma das cenas do filme, o personagem de Huston pergunta a Gittes se ele está dormindo com sua filha.
O próprio Roman Polanski faz uma participação importante no filme. O diretor, que provou, em diversas ocasiões, ser também um bom ator, é o capanga que corta o nariz de Gittes na trama, numa das cenas mais célebres do filme. Para a realização dessa cena, foi fabricada uma faca especial, cujo manuseio era extremamente delicado. 
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Roman Polanski em frente às câmeras, como o bandido que corta o nariz de Jack Nicholson. Assista à cena.
Outro destaque do filme é sua memorável trilha sonora. Chamado em cima da hora, após a dispensa de Philip Lambro, compositor originalmente designado para o projeto, Jerry Goldsmith teve pouco mais de uma semana para gravar a música do filme. O grande Jerry Goldsmith é normalmente apontado como um dos compositores mais influentes e importantes da história da sétima arte. A trilha de Chinatown é um de seus trabalhos mais conhecidos. Ela foi indicada ao Oscar e é vista como uma das melhores trilhas sonoras do cinema, ocupando o nono lugar em votação realizada pelo American Film Institute.
Além das 11 indicações ao Oscar e da estatueta de Melhor Roteiro Original, Chinatown foi premiado no Globo de Ouro nas categorias de Melhor Filme (Drama), Melhor Direção, Melhor Ator (Drama) e Melhor Roteiro. O filme também ganhou três prêmios BAFTA (roteiro, direção e ator). A frase "Forget it, Jake, it's Chinatown!” está entre as 100 melhores frases do cinema noranking do American Film Institute. A mesma instituição incluiu o  filme em 19° lugar na sua lista de melhores filmes americanos de todos os tempos e em segundo na de melhores filmes de mistério. Peça essencial da bela filmografia de Roman Polanski, Chinatown é uma obra-prima indispensável em qualquer Cinemateca.
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