segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Hiroshima mon amour


“Você não viu nada em Hiroshima. Nada.”
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“Eu vi as pessoas caminharem. As pessoas passam pensativas pelas fotos, as reconstituições, na falta de outra coisa. E explicações, na falta de outra coisa.”
No dia 6 de agosto de 1945, a cidade japonesa de Hiroshima foi alvo de um ataque nuclear que resultou em cerca de 140 mil mortos. Quatorze anos depois, o cineasta francês Alain Resnais lançava o filme franco-japonês Hiroshima mon amour, um poema cinematográfico de amor e de morte que lança a questão: como falar de Hiroshima depois da bomba atômica? Como representar tamanha dor e tamanho absurdo? A princípio, Resnais pretendia fazer um documentário sobre os acontecimentos trágicos de agosto de 1945. No entanto, o cineasta decidiu incluir elementos de ficção ao seu projeto e designou a escrita do roteiro e dos diálogos do filme a ninguém menos que Marguerite Duras.
Alain Resnais é um dos mais célebres cineastas franceses, tendo sido um dos responsáveis por lançar um olhar novo sobre a forma de se fazer cinema nos 50 e 60. Contrariando formas narrativas tradicionais, explorando de uma maneira particular e moderna o potencial da linguagem cinematográfica, Resnais construiu uma filmografia impressionante. Dentre suas obras mais conhecidas, encontram-se Noite e Nevoeiro (1955), O Ano Passado em Marienbad(1961), Amores Parisienses (1997) e o recente Medos Privados em Lugares Públicos (2007). O diretor nonagenário acabou de lançar seu último longa-metragem, Vous n'avez encore rien vu (2012).
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“Senti calor na Praça da Paz. Dez mil graus na Praça da Paz. Eu sei. A temperatura do sol na Praça da Paz”.
Desde sua primeira projeção oficial, na edição de 1959 do Festival de Cannes, Hiroshima mon amour foi apresentado como o fruto de uma colaboração estreita entre Resnais e Marguerite Duras, um dos maiores ícones da literatura francesa do século 20. Além de romancista consagrada, dramaturga e roteirista, ela dirigiu 15 longas-metragens, dentre eles o cult India Song (1975). Marguerite Duras chegou a ser indicada ao Oscar em 1961 pelo roteiro deHiroshima mon amour. Pouco tempo após o seu lançamento, o filme teve seu script publicado em livro, o que prova a força poética do texto de Duras. No entanto, mesmo que o roteiro do filme possa ser lido separadamente, o texto de Duras encontra nas belas imagens de Resnais um eco e uma ressonância responsáveis por fazer, dessa obra-prima, um exemplar único na história da sétima arte.
Hiroshima mon amour se passa em 1957 na cidade que dá nome ao título. Em Hiroshima, uma atriz francesa (da qual nunca saberemos o nome) participa de um filme que fala justamente sobre a paz. No dia que antecede sua partida, ela encontra um arquiteto japonês (cujo nome também não é revelado) com quem ela tem uma intensa aventura amorosa. Esse encontro provoca uma série de reflexões sobre os acontecimentos da História que culminaram no bombardeamento em Hiroshima e Nagasaki, assim como os acontecimentos que marcaram a história pessoal da atriz, incluindo seu passado amoroso. O filme opõe e estabelece uma relação poética entre uma tragédia pessoal a uma catástrofe coletiva.
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“Hiroshima. Esse é o seu nome.” “Sim, esse é o meu nome. Seu nome é Ne-vers. Nevers na França.”
A questão da memória e do esquecimento é um dos elementos centrais do filme. A relação amorosa estabelecida em Hiroshima permite a reconstituição de um trauma do passado da jovem atriz, um episódio esquecido que remonta à época em que ela vivia em Nevers, pequena cidade francesa. O apelo à memória faz com que a personagem reviva e redescubra o que se passou em Nevers, como se os elementos esquecidos e reprimidos de seu passado e os fragmentos de sua história viessem à tona em sua consciência. Resnais e Duras traçam assim um paralelo entre o destino trágico de um indivíduo e o horror coletivo das vítimas da bomba atômica.
Após Auschwitz e Hiroshima, muitos artistas viram como necessária a invenção de novas formas artísticas. Hiroshima mon amour se interroga sobre a possibilidade de filmar aquilo que é irrepresentável e dizer aquilo que é indizível. As figuras de repetição presentes no texto de Duras, as elipses narrativas, a montagem baseada em associações e analogias e a representação de imagens mentais participam dessa tentativa de apreender o impossível. Não por acaso os críticos da célebre revista Cahiers du Cinéma chegaram a afirmar que Hiroshima mon amour é um filme sem precedentes na história do cinema, enfatizando sua modernidade.
Assista à célebre sequência de abertura do filme: 
Hiroshima mon amour é um filme que apresenta uma dupla dimensão: uma dimensão íntima e uma dimensão histórica. Essas duas dimensões se sobrepõem através da evocação à memória, ao passado, ao esquecimento e ao trauma. Alain Resnais e Marguerite Duras fazem um filme sobre Hiroshima a partir da premissa de que é impossível se fazer um filme sobre Hiroshima. E nessa tentativa de captar algo que testemunho nenhum pode comunicar, que está na essência do sentimento da perda e do trágico, eles realizam uma obra-prima única, de um lirismo incomparável.
Para o privilégio dos amantes do cinema, Emmanuelle Riva, a protagonista de Hiroshima mon amour, nos oferece, mais de 50 anos depois do seu grande papel, outro trabalho maravilhoso. Aos 85 anos, ela estrela o incrível Amor (2012), filme de Michael Haneke, ganhador da Palma de  Ouro em Cannes.
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“Assim como essa ilusão existe no amor, a ilusão de poder nunca esquecer… Eu tive, diante de Hiroshima, a ilusão de jamais esquecer, como no amor.”

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

O cinema de Agnès Varda


É este o meu projeto: filmar minha mão, com minha outra mão. Entrar no horror. Acho isso extraordinário. Tenho a impressão que sou um animal. Pior: sou um animal que eu não conheço!”
Os Catadores e Eu (2000)
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Agnès Varda no início da carreira. 
Agnès Varda nasceu em Bruxelas, em 1928, mas foi na França que consolidou seu trabalho como cineasta. Em mais de 50 anos de carreira, Varda construiu um belo percurso cinematográfico e, aos 84 anos, é o maior expoente feminino do cinema francês. Sua formação inicial foi em Belas Artes, tendo estudado pintura na escola do Louvre. Seu primeiro trabalho foi como fotógrafa. Da pintura e da fotografia, Varda herdou o olhar de esteta e o gosto pela composição, que estarão presentes em toda a sua obra. Incansável e curiosa, Varda logo se interessou pelo cinema, já que a fotografia lhe parecia um tanto quanto “muda”. Tendo como mentor o diretor Alain Resnais, ela aprenderia rapidamente o métier.
A estreia de Agnès Varda no cinema não poderia ser melhor. Em 1955, ela lança La Pointe Courte, um belo longa-metragem que desafia os códigos da narração. Nesse filme, tido como precursor da Nouvelle Vague, Varda justapõe dois fios narrativos diferentes e sem relação entre si e, através da montagem, ela cria analogias entre esses dois universos distintos. Ainda jovem e inexperiente, Varda seria vista, para sua própria surpresa, como uma das grandes pioneiras da Nouvelle Vague, ainda que nunca tenha feito parte desse grupo. 
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Agnès Varda em Os Catadores e Eu (2000)
A partir do seu primeiro sucesso, Agnès Varda construiu uma carreira extremamente prolífica e eclética. Entre curtas e longas-metragens, ela realizou documentários por encomenda, comoO saisons, ô châteaux (1958), projetos mais pessoais, como os magníficos Os Catadores e Eu(2000) e As Praias de Agnès (2008), e filmes de ficção, como os clássicos As Duas Faces da Felicidade (1965) e Cléo das 5 às 7 (1962), sem nunca renunciar à sua liberdade criativa e sem jamais se curvar ao cinema comercial. Uma das características mais interessantes da filmografia de Agnès Varda é a maneira com que a cineasta alia a prática documentarista, com uma abordagem mais realista, e a prática ficcionalista. Assim, existe algo de documentário em seus filmes de ficção, como existe algo de construção ficcional em seus documentários.
Um dos filmes mais instigantes de Agnès Varda, que merecerá atenção especial nesta coluna, é Sem Teto Nem Lei (1985), longa-metragem de ficção. O script inicial do filme tinha duas páginas. Segundo a cineasta, a inspiração para o projeto veio do inverno e daqueles que estão expostos a ele, sem abrigo. O filme conta a história de Mona, uma jovem recém-saída da adolescência, que adota um estilo de vida nômade e que, com sua tenda, segue um caminho errante no sul da França, encontrando várias pessoas pelo caminho. Sem Teto Nem Lei é um verdadeiro mosaico de pontos de vista, com uma estrutura episódica, organizada a partir dos encontros feitos pela protagonista. A estrada é o cenário principal do filme e o habitat natural de Mona. Varda exibe paisagens de uma França não glamurizada, por vezes decadente e cinzenta.
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Sandrine Bonnaire como Mona, em Sem Teto Nem Lei (1985)
O filme se inicia já com a morte da protagonista e, através de um longo flashback, acompanhamos os últimos momentos da vida de Mona. O filme é organizado em torno dos testemunhos dados pelas pessoas que conheceram a personagem (o que o aproxima do documentário); de 12 belos travellings que atravessam a narração; e da ação propriamente dita. A heterogeneidade formal e a descontinuidade geram uma tensão na estrutura narrativa do filme, que foge do convencional.
Além de ser narrativamente e tecnicamente um filme curioso e instigante, Sem Teto Nem Lei é enriquecido pela presença de sua protagonista. Mona é uma figura completamente marginal, uma anti-heroína difícil, senão impossível de se definir. O filme parece responder à questão: como representar um personagem que se recusa a se revelar? Mona é uma figura sem lugar no mundo, trágica, arredia, enigmática, contraditória, antipática. Grande parte do charme dessa bela personagem está no seu caráter insondável. Varda parece criar um verdadeiro mito, uma figura da qual só podemos nos aproximar através do discurso dos outros. Na pele da fascinante Mona, temos a bela e talentosa atriz Sandrine Bonnaire.
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Agnès Varda, em cena de As Praias de Agnès (2008)
Sem Teto Nem Lei é apenas um exemplo do quão interessante e único é o cinema de Varda. Cada filme dessa cineasta é uma descoberta que mobiliza a inteligência e a sensibilidade do espectador. Agnès Varda é uma grande desbravadora do Outro. Esse Outro, por vezes, é ela mesma como podemos ver nos tocantes As Praias de Agnès e Os Catadores e Eu. O cinema de Varda, seja de documentário ou ficção, é um retrato sensível e, por vezes poético, do mundo real e de pessoas reais.
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