sexta-feira, 7 de março de 2014

Clássicos da Cinemateca - Salò ou os 120 dias de sodoma

"Nós, fascistas, somos os únicos verdadeiros anarquistas, naturalmente, uma vez que somos donos do Estado. Na verdade, a verdadeira anarquia é a do poder."
Divulgação"É quando vejo os outros degradados, que eu me regozijo, sabendo que é melhor ser eu do que ser a escória do povo."
Escrever sobre Salò é provavelmente uma tarefa mais fácil do que de fato assistir ao filme do início ao fim. Diante do horror exibido em cena é normal desviar o olhar, maldizer o diretor, querer parar de assirtir no meio, pular algumas partes... Há até mesmo relatos de quem chegou a passar mal ao ver algumas cenas. Não, não se trata do que normalmente chamaríamos de um filme de terror. No entanto, questão de gênero à parte, talvez este seja um dos mais terríveis filmes de terror já realizados. Ainda hoje, quase 40 anos depois do seu lançamento, Salò causa controvérsias, divide opiniões e, por incrível que pareça, continua banido em alguns países. 
O diretor italiano Pier Paolo Pasolini, o gênio por detrás do filme, é certamente um dos maiores artistas europeus do século XX. Grande poeta e cineasta, Pasolini também escreveu romances, ensaios e peças de teatro. Além de ser um artista multifacetado, Pasolini foi um intelectual extremamente engajado, tendo sido associado por muito tempo ao partido comunista. A defesa corajosa de seus valores e de suas opiniões sobre a sociedade italiana, as diferenças de classes, o clero e o consumismo lhe valeram grandes inimizades. Seu brutal assassinato, em novembro de 1975, jamais foi devidamente esclarecido. Pasolini morreu aos 53 anos, poucos meses antes de Salò ser lançado nos cinemas, tendo nos legado diversas obras-primas, como O Evangelho Segundo São Mateus (1964), Mamma Roma (1962),Teorema (1968) e Desajuste Social (1961).
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"Sempre que os homens são iguais, sem que haja diferença, a felicidade não pode existir."
Erudito e profundo conhecedor do universo das Letras, Pasolini realizou interessantes adaptações de clássicos da literatura universal, como Decameron (1971), Édipo Rei (1967), Os Contos de Canterbury (1972), As Mil e Uma Noites (1974) e Medéia (1969). Salò é baseado no romance 120 dias de Sodoma, do Marquês de Sade, escrito em 1785.  A divisão do filme, em quatro partes, no entanto, é inspirada no segmento “Inferno”, da Divina Comédia de Dante. O filme contém, também, citações de obras de importantes pensadores do século XX, como Roland Barthes, Maurice Blanchot, Philippe Sollers e Simone de Beauvoir.
Pasolini tranpôs a narrativa, que se passava originalmente no século XVII na França, para os últimos dias do regime de Mussolini, na República de Salò, local de onde o ditador governava. Foi também nessa cidade que o irmão do cineasta foi assassinado em 1945. O filme conta a história de um grupo de fascistas libertinos que sequestram 18 adolescentes, garotos e garotas, e os mantêm enclausurados durante meses, impondo-lhes diversas formas de abuso (sexual, em sua maioria) e humilhação. Os jovens são vítimas das mais absurdas perversidades, torturas e atos de violência, arquitetados pelas mentes doentias de um grupo de homens ricos, poderosos e sádicos.
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"Em todo o mundo, nenhuma volúpia agrada os sentidos mais do que o privilégio social."
Vários fatores fazem de Salò um verdadeiro soco no estômago. O filme não nos oferece, por exemplo, uma narração off ou um personagem principal, ou seja, ele não adota nenhum ponto de vista. Essa neutralidade e ausência de referências é extremamente desconfortável para o espectador. Além disso, as terríveis cenas de tortura são, na sua maioria, filmadas em longos planos, sem corte, que não oferecem qualquer escapatória para quem assiste. A brutalidade da história contrasta com a direção clássica e precisa de Pasolini. O diretor acentua a grandiosidade do cenário e o seu caráter opressor, através de belíssimos enquadramentos, marcados pela simetria e acompanhados pela bela trilha sonora de Enio Morricone.
Muitos afirmam que o filme é uma crítica ao poder opressor da sociedade de consumo capitalista. Chegam mesmo a afirmar que a famosa cena de coprofagia (alimentar-se de fezes) é uma metáfora da ascensão da cultura do junkie food. No entanto, a obra parece ir além dessas questões, sendo um exame impiedoso da crueldade humana, do abuso de poder, do autoritarismo e de todas as formas de corrupção. Uma coisa é certa: poucos cineastas ousaram ir tão longe ao tratar da violência e do sexo, o que faz de Salò um dos filmes mais audaciosos e provocadores de todos os tempos.
Melhor filme de Pasolini? Pior? Provavelmente existem argumentos para defender as duas hipóteses. Obviamente, o filme não faz unanimidade, mas também tem grandes admiradores e ferrenhos defensores. Não se pode negar, no entanto, que se trata de uma obra fundamental da filmografia do brilhante diretor italiano. Salò revela-se importante não apenas pelas discussões que levanta, mas também por nos fazer refletir sobre os limites (ou a falta deles) da arte na representação da realidade.
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"O gesto obsceno é como a linguagem do surdo-mudo, um código 
que nenhum de nós, apesar do capricho irreprimido, pode transgredir."
 

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Clássicos da Cinemateca - Três Mulheres

“Tenho uma nova colega de quarto. Pinky, a novata do trabalho. Ela é estranha, mas é melhor do que esperar alguma enfermeira gorda responder ao anúncio.”
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“Você é a pessoa mais perfeita que eu conheci.”
“Estranho” talvez seja o primeiro adjetivo que nos venha à mente ao tentarmos definir o filmeTrês Mulheres. Esse hipnótico longa-metragem de Robert Altman está longe de ser um dos filmes mais conhecidos do diretor e, no entanto, trata-se definitivamente de um dos trabalhos mais interessantes que ele realizou em toda sua prolífica carreira.
Altman fez um pouco de tudo: televisão e cinema, ficção e documentário; dirigiu, roteirizou, produziu; realizou filmes de baixíssimo orçamento e grandes produções. Além disso, o cineasta passeou por diversos gêneros, talvez por todos, tendo feito comédia, drama, filme de guerra, musical, western, suspense e filmes como Três Mulheres e o fascinante Imagens (1972), que dificilmente se enquadrariam em uma só categoria.
A extrema versatilidade de Altman nunca impediu que ele imprimisse em cada um de seus trabalhos o seu estilo e a sua marca de autor. Altman ficou conhecido por jamais se vender à Hollywood e por manter até o fim sua integridade artística. Ele trabalhou até o ano da sua morte, 2006, quando lançou seu derradeiro filme: A Última Noite. No entanto, ele é mais conhecido por títulos como M*A*S*H (1970),  Nashville (1974), O Jogador (1992), Short Cuts - Cenas da Vida (1993) e Assassinato em Gosford Park (2001).
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Gêmeas. Aposto que deve ser estranho. Você acha que elas sabem quem são?
A ideia para a realização de Três Mulheres surgiu de uma série de sonhos que o diretor teve. Não é de se estranhar, portanto, que a narrativa seja dominada, do início ao fim, por uma atmosfera onírica. O filme é ambientado em uma região árida da Califórnia e, como indica o título, ele gira em torno de três personagens femininas: Millie (Shelley Duvall), Pinky (Sissy Spacek) e Willie (Janice Rula).
Millie trabalha em um centro de reabilitação para idosos e é encarregada de treinar a novata Pinky. A primeira exerce um imenso fascínio sobre a segunda. Eventualmente, as duas colegas passam a dividir um pequeno apartamento em um condomínio onde também moram Edgar e sua esposa grávida, Willie, uma artista bastante silenciosa e antissocial. O trabalho de Willie consiste em pintar reiteradamente as mesmas figuras, homens e mulheres que se assemelham a deuses e que parecem travar uma luta corporal. A relação entre as três personagens intensifica-se gradualmente, até que suas identidades acabam se permeando.
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Tive o mais incrível dos sonhos…
Assim como ocorre no excelente Imagens, em Três Mulheres Robert Altman sente-se completamente a vontade para experimentar, o que faz desse filme um belíssimo exercício cinematográfico. Altman contou com o apoio e a confiança do produtor Alan Ladd Jr., que comprou a ideia do filme, sem que existisse sequer um scriptTrês Mulheres começou a ser filmado sem que o roteiro fosse finalizado. As filmagens deram-se de forma linear (o que é bastante raro) e, à medida em que elas avançavam, Altman escrevia as cenas seguintes. Realizado com um modesto orçamento, o filme foi, como era de se esperar, um imenso fracasso comercial.
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Desde que você se mudou, só me causa desgosto. Ninguém quer a sua companhia.
A intenção do diretor era a de realizar um filme que fosse fiel à dinâmica do sonho. Como sabemos, o sonho obedece a um tipo de lógica particular. E é absolutamente admirável como o cineasta consegue captar a indeterminação que é tão característica desse fenômeno do inconsciente. O espectador, assim como os personagens, sente-se mergulhado numa atmosfera estranha, incerta e angustiante. Somos hipnotizados pelas imagens inquietantes que povoam o filme, pela sucessão de símbolos, pelo ritmo cadenciado da narrativa, pelos personagens dúbios, pela trilha sonora sombria. O filme não tem a intenção de ser racional e muito menos didático. Ele é um enigma até mesmo para o diretor, que chegou a afirmar não ter as respostas para os seus mistérios.
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Prefereria enfrentar um milhão de selvagens do que uma mulher que aprendeu a atirar.
Altman era conhecido por ser um excelente diretor de atores e por lhes conceder uma grande liberdade criativa na hora das filmagens. Em Três Mulheres, a improvisação é levada ao extremo, já que muitos dos diálogos nem mesmo chegaram a ser escritos. Um dos maiores acertos do cineasta é a escalação de seu elenco. Altman escolheu para protagonizar o filme duas das atrizes mais interessantes e estranhas (no bom sentido) do cinema hollywoodiano: Shelley Duvall e Sissy Spacek. Donas de uma beleza nada convencional, ambas despontaram nos anos 70.
A talentosíssima Spacek havia chamado a atenção, no ano anterior, ao encarnar Carrie, a Estranha (1976). Duvall, por sua vez, teve um papel de destaque em Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (também de 1977) e, em três anos, faria o seu papel mais famoso, na obra-prima O Iluminado (1980), ao lado de Jack Nicholson. Duvall, ganhadora do prêmio de Melhor Atriz em Cannes por seu trabalho em Três Mulheres, nos oferece provavelmente a melhor performance da sua carreira.
Além de compor uma personagem fascinante, Duvall tem uma figura tão interessante em cena, com seus grandes olhos assustados, que é difícil não se lamentar que ela não faça mais filmes atualmente. Willie, sua personagem, é pateticamente solitária, iludida, impopular, completamente ignorada por todos a sua volta. A única pessoa que se interessa por ela é Pinky, uma jovem moça recém-chegada do Texas. Spacek brilha ao criar essa personagem particularmente bizarra e infantil e ao mostrar sua transformação ao longo da narrativa. Janice Rula, que interpreta a terceira mulher, também cria uma personagem bastante interessante e ambígua, ainda que tenha um espaço menor na trama. À medida em que o filme avança, as identidades das três personagens se cruzam, se fundem e se confundem.
Ao contrário do que se possa pensar, Três Mulheres não é um filme menor de Robert Altman e, sim, uma prova cabal da genialidade, do preciosismo e do talento do diretor. Talvez não seja um filme para todos os gostos e dificilmente seja uma unanimidade, mas muitas obras-primas não o são. 
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Sonhos não podem te machucar.
 

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Clássicos da Cinemateca - Branca Neve e os Sete Anões

Magic mirror on the wall,
who is the fairest one of all?
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With a smile and a song/ Life is just a bright sunny day/ 
Your cares fade away/ And your heart is young 
Romance, ação, terror, drama, comédia, musical. Todos esses gêneros podem ser encontrados em Branca de Neve e os Sete Anões (1937). Muito provavelmente, esse clássico será para sempre lembrado como a maior realização da Disney e um dos melhores filmes que o cinema hollywoodiano já produziu. A “loucura de Walt Disney”, como o empreendimento ficou conhecido desde que o criador do Mickey o anunciou em 1934, consistiu em fazer um longa-metragem de animação, de 83 minutos, numa época em que os desenhos animados eram tidos como um entretenimento rápido. Ainda que outros longas-metragens de animação tenham sido lançados nos Estados Unidos antes de Branca de Neve (filmes, hoje, considerados perdidos ou raros), foi o clássico de 1937 que inaugurou toda uma linhagem de filmes de animação. Assim, as grandes animações que se seguiram (de O Rei Leão aos filmes da Pixar, passando por A Bela e a Fera e tantos outros) são devedoras da revolução cinematográfica que foi Branca de Neve e os Sete Anões
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- But to make doubly sure you do not fail, bring back her heart in this!
Para realização desse clássico, Disney contou com uma equipe gigantesca, que era composta por mais de 300 profissionais. Essa equipe teve que aprimorar e desenvolver diversas técnicas para que o projeto ambicioso saísse do papel. Uma das maiores inovações foi o uso da câmera multiplano (multiplane camera), que permitia a ilusão de tridimensionalidade ao criar três níveis de ilustração e animá-las diferentemente. Além disso, os animadores tiveram que utilizar uma película maior do que a que então utilizavam para os cartoons, a fim de explorar ao máximo os detalhes da animação. O resultado não poderia ser melhor. Branca de Neve e os Setes Anões é um espetáculo de movimento. Cada um dos inúmeros elementos vistos na tela é dotado de vida. 
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Heigh-ho, Heigh-hoIt's home from work we go
O apuro técnico sozinho não faz um grande filme. E talvez Branca de Neve e os Sete Anõesnão fosse lembrado da mesma forma se não tocasse tanto o coração das pessoas. Para o seu primeiro longa-metragem de animação, Walt Disney escolheu adaptar um conto de fadas bastante conhecido dos irmãos Grimm. Obviamente, não se trata de uma adaptação completamente fiel. O time de Disney se apropriou da essência do texto dos escritores alemães e fez uma versão que se tornou ainda mais popular e conhecida do que o original. Um dos métodos usados por Disney para estimular a criatividade de sua equipe era o de premiar as melhores ideias e gags sugeridas. O processo de criação posto em prática por Walt Disney baseava-se na colaboração, na troca incessante de ideias, um trabalho verdadeiramente feito em conjunto. 
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Ho hum the tune is dumb/ The words don't mean a thing/ 
Isn't this a silly song/ For anyone to sing?
Um dos grandes acertos de Walt Disney foi apostar nas figuras dos sete anões (que nem são nomeados no original). Cada um dos anões é dotado de uma personalidade bem definida, que é explicitada em seus nomes e nos movimentos dos personagens (que são exagerados através da animação para que possam expressar suas emoções). Ao lado de Branca de Neve, os apaixonantes anões são as grandes estrelas do filme.
E por falar na heroína, há mesmo quem defenda que ela é uma das personagens menos interessantes (sem falar do príncipe, cuja presença é ainda menos notável do que no texto original). Passiva e ingênua, Branca de Neve encarna a perfeita dona de casa que deve lavar, passar e cozinhar, enquanto seus homens, os anões, trabalham (recentemente Meryl Streep levantou a questão da misoginia de Walt Disney e talvez seja interessante confrontá-la com a maneira como as princesas são representadas em suas animações, mas isso é uma discussão a parte).
Muito mais interessante e, até mesmo bonita, é a maquiavélica Rainha, que encarna a competitividade sem limites, a valorização excessiva da beleza estética e a vaidade extrema, valores bastante em voga ainda hoje. Altiva e conhecedora das artes da feitiçaria, a Rainha conta com a ajuda de um sinistro espelho.
Não podemos deixar de citar também os animais que povoam o filme. Como de costume em qualquer produção Disney, eles possuem um papel de destaque.
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- All alone, my pet?
Branca de Neve e os Sete Anões é recheado de momentos antológicos que povoam o imaginário de inúmeros cinéfilos. A brilhante (e assustadora) cena em que a heróina se perde na floresta é provavelmente uma das mais lembradas e elogiadas. Mas o filme conta também com momentos de pleno regozijo, como aquele em os anões se deparam com a Branca de Neve dormindo em seu quarto e, quando ela acorda, um por um seus narizes aparecem por detrás da cama. E o que dizer da cena da arrumação, na qual animais (lembra do esquilo que usa o rabo como espanador?) e Branca de Neve fazem a faxina mais divertida da história do cinema?
O filme também conta com muitas canções inesquecíveis, compostas por Frank Churchill e Larry Morey, como "Heigh-Ho", "Some Day My Prince Will Come" e "Whistle While You Work". As dublagens são extremamente eficazes, com destaque para a bela voz de Adriana Caselotti (Branca de Neve) e para a performance inspirada de Lucille La Verne (a Rainha, reparem a mudança de sua voz depois que a personagem se transforma em bruxa). 
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Someday my prince will come/ Someday I’ll find my love/ 
And how thrilling that moment will be/ When the prince of my dreams comes to me
Talvez o espectador dos dias hoje, acostumado com as mais diversas “pirotecnias” cinematográficas, não consiga mensurar a revolução que representou a realização desse clássico, nem mesmo imaginar a reação do público da época (surpresa, choque, encantamento?). E talvez o público daquele tempo não tivesse consciência de estar diante de um dos maiores marcos do cinema. Fato é que “a loucura de Disney” foi um estrondoso sucesso de bilheteria e obviamente de crítica. Feitos os devidos ajustes de inflação, Branca de Neve e os Sete Anões continua sendo um dos filmes de maior bilheteria dos Estados Unidos. Encontrado facilmente na maioria das listas dos melhores filmes da história do cinema, a animação fez diversas gerações rirem, chorarem, cantarem e ainda hoje é capaz de fazer, de qualquer marmanjo, uma eterna criança. 

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Clássicos da Cinemateca - 12 Homens e uma Sentença

“É sempre difícil deixar o preconceito fora de uma questão dessas. Não importa pra que lado vá, o preconceito sempre obscurece a verdade.”

– Você está falando de uma questão de segundos! Ninguém pode ser tão preciso!
– Bem… Acredito que um depoimento que pode colocar um garoto numa cadeira elétrica deva ser preciso!
Sidney Lumet faz parte do panteão hollywoodiano. O cineasta foi um dos deuses do cinema americano, um dos melhores diretores de atores que Hollywood conheceu e um excelente contador de histórias. O incansável e prolífico cineasta nos legou uma filmografia extensa (mais de 50 filmes, além de diversos trabalhos para a televisão), em que abundam obras-primas como 12 Homens e uma Sentença (1957), Um Dia de Cão (1975), Rede de Intrigas(1976), Serpico (1973), O Príncipe da Cidade (1981) e O Veredito (1982)Lumet trabalhou até os 82 anos e seu último filme foi o ótimo Antes que o Diabo Saiba que Você Está Morto (2007).
Lumet foi um dos grandes retratistas de Nova York e é tido como um dos últimos moralistas de Hollywood, tendo tratado de questões fundamentais como justiça e ética. O realismo social e a complexidade psicológica dos personagens são algumas das características mais marcantes do cinema do diretor.
Os filmes de Lumet são geralmente palco de grandes atuações e o cineasta trabalhou, ao longo de sua carreira, com muitas das maiores estrelas hollywoodianas, como: Katharine Hepburn, Ingrid Bergman, Henry Fonda, Sean Connery, Marlon Brando, Paul Newman, Al Pacino, Peter Finch, Richard Burton, Faye Dunaway, só para citar alguns nomes. 

– De acordo com o depoimento, o rapaz parece culpado... Talvez ele seja. Eu me sentei lá na corte por seis dias ouvindo enquanto as evidências era apresentadas. Todos pareciam ter tanta certeza, você sabe, eu... Eu comecei a ter um sentimento peculiar sobre esse julgamento. Quero dizer, nada é tão certo.
Doze Homens e uma Sentença é a adaptação de uma peça feita para a televisão (teleplay). A peça, escrita por Reginald Rose e dirigida por Franklin Schaffner, foi ao ar em 1954. O filme é a estreia de Lumet no cinema. O diretor já havia chamado a atenção pelo seu trabalho na televisão americana, como nas séries The Alcoa Hour (1956) e Studio One (1957). O ator Henry Fonda, além de protagonizar Doze Homens e uma Sentença, também atuou como produtor e foi o responsável por trazer Lumet para o projeto.
O filme conta a história de um júri de 12 homens que deve deliberar sobre a inocência ou culpa de um jovem, acusado de assassinar o pai. O que parecia ser uma decisão simples se complica quando o Jurado 8 (Henri Fonda) questiona a falta de provas para incriminar o rapaz. Um longo e acalorado debate se instaura entre os jurados, até que eles cheguem a um consenso.

– Estamos tentando colocar um homem culpado na cadeira elétrica onde é o lugar dele, aí um homem começa a contar contos de fadas e estamos escutando!
Doze Homens e Uma Sentença focaliza a confrontação dos jurados e os conflitos que surgem a partir das diferentes opiniões, personalidades, origens. Eles são identificados não pelos nomes, mas por números e pelas profissões, o que contribui para a criação de tipos sociais bem definidos. Aos poucos, o espectator se familiariza com o perfil de cada um deles.
Os personagens encontram-se enclausurados na sala do júri e o filme se passa quase integralmenre entre quatro paredes. Para dar a progressiva sensação de claustrofobia, Lumet posiciona inicialmente as câmeras acima do nível dos olhos e utiliza lentes que dão a impressão de maior distância entre os personagens. À medida em que o filme progride, o diretor abaixa o posicionamento da câmera, troca as lentes para que o cenário pareça mais perto dos atores e passa a utilizar os closes com maior frequência.
Uma das grandes forças do filme é a performance do elenco. Lumet submeteu os atores a longos ensaios e chegou a deixá-los fechados durante horas na sala, repetindo as falas sem filmá-los, para que eles sentissem na pele o desconforto e a angústia dos personagens. O resultado é mais do que satisfatório. Destacam-se o grande Henry Fonda e seu antagonista Lee J. Cobb, em uma atuação inspirada. Os diálogos afiados e inteligentes permitem uma reflexão ainda atual sobre o papel e a eficácia do sistema judiciário.
Considerado um dos melhores filmes de tribunal já realizados, 12 homens e Uma Sentença é constantemente utilizado em cursos e seminários para ilustrar dinâmicas de grupo e resolução de conflitos. Em seu filme de estreia, Lumet já demonstra sua imensa habilidade de explorar os dramas humanos, as relações interpessoais, a dificuldade de comunicação do ser humano, a incompreensão e o egoísmo.
Clássico incontornável, obra-prima celebrada por críticos e cinéfilos, 12 Homens e Uma Sentença foi indicado a três Oscars (Melhor Filme, Melhor Diretor e Melhor Roteiro), além de ter levado o Leão de Ouro no Festival de Berlim, em 1957.

– Eu não sei realmente o que é a verdade. E suponho que ninguém jamais saberá.