sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Clássicos da Cinemateca - Morte em Veneza

"Sabe… por vezes, penso que os artistas são como caçadores que atiram no escuro. Desconhecem o alvo e não sabem se o atingiram. Mas não podemos esperar que a vida nos mostre o que a arte é. A criação de beleza e pureza é um ato espiritual.”

“Não deves sorrir assim! Não se deve sorrir assim pra ninguém!”
Grande ícone do cinema italiano, Luchino Visconti nos legou obras-primas como O Leopardo(1963), Rocco e Seus Irmãos (1960), Obsessão (1942) e A Terra Treme (1947). O cineasta esteve ligado, ao lado de diretores como Vittorio De Sica e Roberto Rossellini, à criação do movimento neorealista italiano. Ainda que descendente da alta aristocracia milanesa, Visconti sempre se mostrou questionador e “rebelde”, tendo sido um grande apoiador do Partido Comunista Italiano, principalmente durante a Segunda Guerra Mundial. O cineasta também nunca escondeu sua homossexualidade e manteve uma longa relação com o ator austríaco Helmut Berger, que dirigiu em filmes como Os Deuses Malditos (1969) e Ludwig, a Paixão de um Rei (1973). Visconti trabalhou também com algumas das maiores estrelas do cinema de seu tempo, como Anna Magnani, Silvana Mangano, Claudia Cardinale, Marcello Mastroianni, Alain Delon, Dirk Bogarde e Burt Lancaster.
Visconti é também reconhecido por ter realizado belíssimas adaptações de clássicos da literatura mundial, como O Estrangeiro (1967), de Camus, Noites Brancas (1957), de Dostoiévski, e Morte em Veneza (1971), de Thomas Mann. O último é um dos filmes mais famosos do diretor. Baseado no romance homônimo, obra-prima publicada em 1912, o filme explora o tema da velhice e a incontornável ameaça da morte, associadas à busca incessante de uma forma de beleza ideal e inacessível. O filme se passa na bela Veneza, que aos poucos vai se deteriorando devido a uma série de medidas sanitárias postas em práticas pelo serviço de saúde local, em razão de uma epidemia de cólera.

“Sabedoria? Dignidade humana? Para que servem? O gênio é uma dádiva divina.”
Morte em Veneza é ambientado na Veneza do século 20, onde reina uma burguesia que ama o luxo e a boa vida. No magnífico Grande Hotel da cidade, o velho compositor Aschenbach encontra Tadzio, adolescente andrógino, de origem polonesa, que passa as férias com a famíla. O compositor vê no garoto a mais perfeita representação da Beleza, um tipo de beleza ideal que o artista sempre buscou alcançar em suas obras. Um sentimento desconcertante, uma imensa fascinação toma conta do protagonista. A relação dos dois personagens se resume basicamente a olhares trocados. Ainda que uma epidemia de cólera ameace a cidade, Aschenbach se recusa a partir. 

“A realidade apenas nos distrai e degrada.”
Apesar de ser um dos filmes mais conhecidos e admirados do cineasta italiano, Morte em Veneza está longe de ser uma unanimidade. A maior parte das críticas negativas têm por alvo a liberdade tomada pelo o cineasta ao adaptar o romance de Mann. Importantes modificações foram realizadas a partir da história original. A mais famosa delas diz respeito à transformação do protagonista (que no romance era um escritor) em um compositor. Ao que tudo indica, essa mudança se deve ao fato de Visconti considerar que o Aschenbach de Mann teria sido inspirado no compositor Gustav Mahler. Não é por acaso que a 5ª Sinfonia de Mahler está constantemente presente na trilha sonora do filme. Visconti também introduziu diversos flashbacks na narrativa e buscou inspirações em outras obras literárias, como Em Busca do Tempo Perdido, de Proust e, principalmente, Doutor Fausto, outra obra de Mann.
No entanto, os críticos mais severos atacam, sobretudo, a maneira com a qual o diretor imprimiu no filme sua visão da obra. Para críticos como Roger Ebert, o cineasta peca ao conferir um teor sexual à relação do protagonista e o jovem garoto. Para o crítico americano, Visconti ignora as sutilezas do texto de Mann ao apresentar a relação dos dois personagens como um amor homossexual. Ebert insiste que o garoto representa um ideal de beleza e não um objeto de desejo. 

“Não há impureza tão impura quanto a velhice.”
A releitura que faz Visconti da obra-prima de Thomas Mann pode ter seus detratores, mas também conta com inúmeros fãs. A trágica história de amor (impossível) contada pelo cineasta italiano conserva alguns dos principais elementos do romance, como a discussão filosófica sobre a eterna busca pela beleza ideal e a reflexão sobre o fazer artístico. Visconti também focaliza a confusão de sentimentos, a paixão e a decadência tão presentes no romance. O filme trata de uma maneira tocante e humana o que é envelhecer e o que é buscar a vida, a paixão e a juventude, enquanto se espera pela morte. 

“Sabe o que existe na base daquilo que agrada a todos? A mediocridade.”
Ainda que controverso, Morte em Veneza continua sendo um dos mais belos filmes de Visconti. O longa-metragem é esteticamente primoroso, o que é inegável mesmo entre aqueles que não o consideram uma obra-prima. Poucas vezes, Veneza foi retratada de maneira tão exuberante (graças também à bela fotografia de Pasqualino De Santis). Visconti confere uma atmosfera melancólica, decadentista e, ao mesmo tempo, sublime à bela cidade italiana. O jovem Ladzio surge como o próprio símbolo da beleza e Visconti filma o jovem ator sueco Björn Andrésen como se ele fosse uma verdadeira obra de arte. Para completar, o excelente ator inglês Dirk Bogarde nos oferece uma performance emocionante, minimalista, placidamente trágica, naquele que é provavelmente seu papel mais famoso no cinema.
Efusivamente poético, Morte em Veneza conta a história do último amor de um artista, um amor epifânico, perturbador, que tem por objeto um jovem garoto, a própria encarnação da beleza. O sentimento amoroso é condenado pela impiedosa ação do tempo que nada poupa. Visconti retrata com sensibilidade a paixão de um homem que morre progressivamente. Trata-se, provavelmente, de um dos filmes mais pessoais e  intrigantes do mestre italiano. 

“Não Gustav, não. A beleza pertence ao mundo dos sentidos. Apenas aos sentidos.”

sábado, 19 de outubro de 2013

Clássicos da Cinemateca - O Cozinheiro, o Ladrão, Sua Mulher e o Amante

Try the cock, Albert. It's a delicacy, and you know where it's been.
His mother is a Roman Catholic, he's been imprisoned in South Africa, he's as black as the ace of spades and he probably drinks his own pee!
Peter Greenaway é artista plástico, escritor, cineasta e grande estudioso das artes em suas mais diversas formas. O versátil artista britânico é reconhecido por imprimir em suas obras cinematográficas referências à pintura flamenca e às obras renascentistas e barrocas. Seus filmes são marcados por certo preciosismo na composição cênica. Talvez por ser um exímio pintor, Greenaway demonstre, em suas obras para o cinema, grande habilidade no uso de cores, contrastes e iluminação. Considerado um cineasta elitista por alguns, gênio por outros, Greenaway consolidou, ao longo de mais de 50 anos de carreira, uma filmografia bastante interessante e rica, composta por filmes de ficção (curtas e longas-metragens) e documentários.
Os filmes de Peter Greenaway geralmente passam longe do circuito comercial e costumam ser classificados como “filmes de arte”. O diretor sempre flertou com o experimentalismo e muitas de suas obras de ficção não apresentam uma estrutura narrativa convencional. Controverso e assumidamente pretensioso, o cinema de Greenaway explora os limites da linguagem cinematográfica e instaura um diálogo fascinante entre o cinema, outras manifestações artísticas e diversas áreas do conhecimento humano.
O inquieto diretor é tido como um dos mais brilhantes expoentes do cinema britânico, ainda que não compartilhe da popularidade de cineastas contemporâneos, como David Lynch e Martin Scorsese. Dentre suas maiores realizações, encontram-se: O Cozinheiro, o Ladrão, Sua Mulher e o Amante (1989), Afogando em Números (1988), O Livro de Cabeceira (1996), O Contrato do Amor (1982). O último longa-metragem de ficção do diretor foi Goltzius and the Pelican Company (2012), ainda inédito no Brasil. Nos últimos anos, Greenaway tem se dedicado bastante à realização de instalações multimídias e exposições de arte. 
Looks like catfood for constipated French rabbits!
O Cozinheiro, o Ladrão, Sua Mulher e o Amante é uma das grandes obras-primas de Greenaway e o filme de maior sucesso do diretor. Trata-se de uma sátira brilhante e excêntrica, carregada de humor negro, sobre o exagero, o mau-gosto e a maldade humana. Filmado de maneira exuberante, excessivamente gráfica e luxuriosa, O Cozinheiro… se passa quase inteiramente em um sofisticado restaurante francês, chamado Le Hollandais.
Richard (Richard Bohringer), o chefe, é um gênio da cozinha, um verdadeiro artista gastronômico. Já o proprietário do restaurante, Albert Spica (Michael Gambon), é um um grande homem do crime (à la Poderoso Chefão), que frequenta todas as noites o Le Hollandais, na companhia de sua bela mulher Georgina (Helen Mirren) e uma corja de bajuladores. Enquanto faz seus discursos ácidos e impagáveis, Albert se descuida da esposa que acaba por se interessar por um dos clientes do lugar, o intelectual Michael (Alan Howard). Logo, eles iniciam um tórrido caso de amor. 
Circumcised mediocrity is screwing my wife!
Em O Cozinheiro…, Greenaway focaliza algumas das pulsões primárias do ser humano: o desejo sexual, a gula e a violência. O exagero e o grotesco fazem parte da suculenta sátira social realizada pelo cineasta e tais características são personalizadas em Albert, um personagem hiperbólico, monstruoso e desprezível. Na pele desse personagem cruel e falastrão, temos o ótimo ator irlandês Michael Gambon (o professor Dumbledore dos últimos filmes da franquia Harry Potter) em uma performance inesquecível. Certamente, Albert é uma das maiores encarnações do mal já vistas no cinema.
Mas não é apenas Gambon que se destaca no filme. Helen Mirren, atriz shakesperiana, famosa por interpretar personagens da nobreza britânica e ganhadora do Oscar em A Rainha (2006), surge belíssima em O Cozinheiro… e esbanja sensualidade ao encarnar a esposa infiel de Albert. A atriz inglesa brilha, sobretudo, por mostrar a transformação de sua personagem, cujo final é apoteótico. Mirren, por sinal, protagoniza tórridas cenas de sexo com o excelente Alan Howard. 
I think those Ethiopians enjoy starving. Keeps them thin and graceful.
Desson Howe, crítico do Washignton Post, disse, certa vez, sobre o filme: Greenaway “trata do assunto mais feio imaginável da maneira mais bela possível”. De fato, o filme poderia ser descrito como um verdadeiro “banquete visual”. Nesse banquete, Greenaway contou com a belíssima fotografia de Sacha Vierny, o primoroso trabalho de Ben Van Os e Jan Roelfs na direção de arte e figurinos assinados por ninguém menos que Jean-Paul Gautier. Greenaway abusa das cores fortes e das texturas. Cada cenário tem sua cor característica: o vermelho do salão, o branco do banheiro, o verde da cozinha. A variedade de cores é também visível nos figurinos dos personagens, que mudam magicamente quando eles trocam de cenários. Tudo é extremamente estilizado, barroco, rebuscado.
A maioria dos filmes de Greenaway caracteriza-se por certo distanciamento emocional. O Cozinheiro…, no entanto, é uma obra visceral. Roger Ebert, em sua análise do filme, atribuiu essa transformação ao sentimento de raiva do diretor, fruto de um descontentamento político. Alguns críticos e estudiosos viram no longa-metragem uma forte dimensão alegórica. O filme seria, assim, um protesto semivelado, uma parábola sobre a situação político-social do Reino Unido de Margaret Thatcher. Uma das interpretações propostas para o filme vê cada um dos quatro personagens principais como representações de entidades e segmentos distintos da sociedade britânica: o cozinheiro simbolizaria os funcionários publicos e os cidadãos obedientes; o ladrão, a arrogância, o autoritarismo e o poder de Margaret Thatcher; o amante, a oposição composta por intelectuais e esquerdistas; e a esposa, a própria pátria.
A obra-prima de Greenaway, no entanto, não se reduz a um único contexto político e nos oferece uma reflexão atemporal sobre as relações de poder, sobre a exploração do homem sobre o homem e sobre o lugar que a violência e a cultura ocupam em nossa sociedade. O Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante é um filme provocador, inteligente e tragicamente divertido. 
Could you cook him?

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Clássicos da Cinemateca - Uma mulher sob influência

“Todos nós nascemos loucos. Alguns permanecem.” Samuel Beckett
“Tornei-me insano, com longos intervalos de uma horrível sanidade.”  Edgar Allan Poe
John Cassavetes teve uma prolífica carreira como ator, tendo trabalhado em grandes filmes como Os Doze Condenados (1967) e O Bebê de Rosemary (1968). O galã de origem grega, no entanto, deixou sua maior marca no cinema como diretor e roteirista. Dizem, inclusive, que seus trabalhos como ator em filmes de outros diretores eram uma forma de financiar seus próprios projetos. Em ocasião de uma retrospectiva sobre o cineasta realizada em Nova York, neste ano, a New York Magazine afirmou que Cassavetes “pode ter sido o diretor americano mais influente dos últimos 50 anos”. Ainda que sua filmografia seja pouco conhecida do grande público, Cassavetes é considerado um ícone do cinema independente, um cineasta pioneiro e reverenciado pelos seus pares. Cassavetes chegou a realizar o raro feito de ter sido indicado a Oscars de atuação, direção e roteiro por trabalhos diferentes. O multitalentoso diretor/ator morreu ainda jovem, aos 59 anos, em 1989. No entanto, sua obra permanece viva e é objeto de estudo de muitos especialistas.
O cinema de Cassavetes é dominado por personagens complexos, cujos desejos e pulsões são difíceis de se compreender. O diretor sempre procurou trabalhar com atores que se entregassem inteiramente a seus papéis, sem se preocuparem com a própria imagem ou temerem o ridículo. Sua carreira é marcada por parcerias frutíferas com atores que demonstravam tais qualidades. Ele trabalhou, por exemplo, dez vezes com a esposa, Gena Rowlands, seis vezes com Peter Falk e cinco vezes com Ben Gazzara. Cassavetes  afirmou, certa vez, que o mais difícil para um cineasta era encontrar pessoas que quisessem realmente criar algo conjuntamente. Fazendo filmes de baixíssimo orçamento (às vezes financiados por ele mesmo), Cassavetes costumava escalar amigos para trabalharem em seus projetos, em troca de pouco dinheiro ou parte dos ganhos dos filmes nas bilheterias. Muitas vezes, as filmagens de seus longas-metragens eram interrompidas por falta de dinheiro e reiniciadas quando havia recursos disponíveis novamente.
"Todos os homens são doidos e, apesar das precauções, só diferem entre si em virtude das proporções." Nicolas Boileau
Cassavetes deixou, como cineasta, a marca de um estilo singular, que se diferenciava bastante do que era realizado em Hollywood. O diretor gostava de filmar com a câmera na mão, com o auxílio de luz natural, imprimindo um tom de documentário a suas obras e buscando a espontaneidade de seus atores. Por essa razão, o diretor é geralmente apontado como um dos grandes expoentes, nos Estados Unidos, do cinéma verité, movimento cinematográfico cuja criação é atribuída ao francês Jean Rouch. A improvisação e o desejo de observação da realidade marcam esse estilo. O improviso, de fato, fazia parte do método de criação de Cassavetes. No entanto, ao contrário do que muitos acreditam, seus filmes eram roteirizados (com a exceção de Sombras, de 1959). Esse mal entendido deve-se, sobretudo, à liberdade que Cassavetes conferia aos atores, que podiam imprimir suas próprias ideias e interpretações em suas performances. Ainda que houvesse script e diálogos pré-determinados para guiarem os atores, a intuição e o instinto dos mesmos prevaleciam na hora das filmagens.
Cassavetes é um dos maiores exemplos de um cineasta que nunca comprometeu seus valores artísticos e estéticos para que seus filmes fossem produzidos. Ele nunca cedeu ao cinema comercial, nunca permitiu que estúdios, executivos e investidores ditassem suas escolhas artísticas e interferissem no seu trabalho. Ele chegou a hipotecar sua casa para produzir Uma Mulher Sob Influência (1974), não precisando assim se submeter às vontades de um investidor qualquer. Por essas razões, Cassavetes é um dos maiores nomes do cinema independente americano. Dentre as maiores realizações do cineasta encontram-se A Morte de um Apostador Chinês (1976), Noite de Estreia (1977), Faces (1968), Glória (1980) e Amantes (1984). Uma Mulher Sob Influência é tido como uma das suas maiores obras-primas. 
“Eu não sou louco. É o mundo que não entende minha lucidez...” Raul Seixas
A gênese de Uma Mulher Sob Influência é bastante curiosa. Gena Rowlands havia dito ao marido que queria atuar em uma peça que tratasse das dificuldades que enfrenta a mulher moderna. A partir desse desejo da esposa, Cassavetes escreveu o material para a peça. A atriz, no entanto, disse que seria impossível atuar várias vezes por semana em um projeto tão intenso e desgastante. O diretor resolveu, então, adaptar a história para o cinema. Iniciou-se, assim, uma verdadeira epopeia para arrecadar dinheiro para a realização do filme. Segundo o cineasta, ninguém queria ver uma mulher louca de meia idade no cinema.
Sem investimentos dos estúdios, Cassavetes hipotecou sua casa e fez empréstimos com amigos, dentre eles, Peter Falk (famoso por interpretar Columbo na televisão). Falk havia amado o roteiro e queria não só investir, mas também atuar no longa-metragem. A equipe do filme consistia, em sua maioria, de estudantes do American Film Institute. Além de atuar, Rowlands era responsável pela própria maquiagem e penteado. Após a finalização do filme, o novo desafio foi encontrar uma forma de distribuí-lo.
Sem conseguir um distribuidor, Cassavetes viu-se obrigado a contatar pessoalmente proprietários de cinemas e pedir para que exibissem seu filme. Segundo Jeff Lipsky, na época um universitário que foi chamado para ajudar no lançamento do longa-metragem, “foi a primeira vez na história do cinema que um filme independente foi distribuído sem o uso de um sistema nacional de sub-distribuidores”. Cassavetes levou também o longa-metragem a algumas universidades, onde organizou discussões com os alunos. O filme chegou também a participar de alguns festivais, como o de San Sebastián.
Nomes famosos da indústria cinematográfica se manifestaram a favor do filme. Martin Scorsese, que era um grande fã de Cassavetes, disse que retiraria o seu Alice não mora mais aqui (1974) de um grande festival de Nova York, se Uma Mulher Sob Influência não fosse incluído no mesmo. O ator Richard Dreyfuss também fez campanha pelo filme na televisão americana, qualificando-o como incrível, perturbador, brilhante e triste. Ele chegou a declarar que ficou “louco” com o filme e que vomitou depois de assisti-lo. Aos poucos, o filme foi ganhando destaque e chegou a ser indicado ao Oscar de Melhor Atriz e Direção.
“Dizem que sou louco por pensar assim / Se eu sou muito louco por eu ser feliz / Mas louco é quem me diz / E não é feliz, não é feliz” Arnaldo Baptista / Rita Lee
Uma Mulher Sob Influência focaliza o cotidiano dramático de uma família norte-americana. Mabel Longhetti (Gena Rowlands) é dona de casa, esposa e mãe. Seu marido Nick (Peter Falk) é o líder de um grupo de operários, um sujeito expansivo, rude e agregador. Mabel se esforça para agradar o marido, para ser uma boa mãe, para lidar com as pessoas ao seu redor. No entanto, ela não é uma pessoa como as outras. Em meio aos estranhos maneirismos de Mabel, ao seu comportamento errático, à sua maneira nada convencional de se expressar, é possível visualizar uma mulher desesperada, às voltas com as obrigações de uma vida doméstica talvez indesejada. Louca? Eis a questão. Qual o limite de sanidade? Onde começa a loucura? O filme focaliza o antes e o depois da internação de Mabel numa clínica psiquiátrica. A incompreensão, a violência e também um extremo amor fazem parte da vida dessa família tão disfuncional.
Mabel é o coração do filme. Insegura, nervosa, sensível, a personagem parece viver à beira do abismo da própria sanidade. Em meio a tantos papéis que deve ocupar, o de mãe, o de dona de casa, o de esposa, o de anfitriã, ela parece perder sua própria identidade. Nick insiste para que ela apenas seja ela mesma. Mas será que ela sabe como? Nick, por sinal, também tem seus problemas. Ele não sabe lidar com a esposa, adotando atitudes extremas, às vezes agressivas, às vezes plenas de afeto e esperança. Por vezes, ele também parece lutar contra insanidade. Cassavetes retrata diversas camadas de emoção e uma variedade enorme de sentimentos. O filme parece transbordar a ficção e os personagens, tão complexos, tão crus, parecem se libertar do seu estatuto de personagens.
“Sou louco porque vivo em um mundo que não merece minha lucidez.” Bob Marley
Na pele de Mabel, temos uma Gena Rowlands soberba. Nenhum elogio é excessivo para descrever o que ela faz em cena. Nunca no cinema, a loucura foi retratada de uma forma tão pungente, tão visceral. A composição da atriz é rica em detalhes e nuances. O sofrimento, a incapacidade da personagem de se relacionar e se expressar, sua inadequação se tornam tangíveis graças ao desempenho impressionante da atriz. Ao lado dela, Peter Falk nos oferece uma das melhores interpretações da sua carreira e é o contraponto perfeito para Rowlands. Com muita sensibilidade, o ator comunica a impotência de seu personagem e suas limitações. Nick é um ser humano falho, mas completamente apaixonado pela esposa.
Uma Mulher Sob Influência é um dos filmes mais interessantes a estudar a estrutura familiar e a loucura. Brilhantemente dirigido e atuado, esta obra-prima de John Cassavetes trata de uma maneira comovente e sensível a complexidade do ser humano e das relações de amor. 
"A loucura é vizinha da mais cruel sensatez. Engulo a loucura porque ela me alucina calmamente." Clarice Lispector

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Clássicos da Cinemateca - Ondas do Destino

Todo mundo tem alguma coisa em que é bom. Eu sempre fui burra, mas eu sou boa nisso.

Achamos que ele ficará paralisado. Mas ele viverá!
“Um filme deve ser uma pedra no sapato!”, é o que afirmou, certa vez, o polêmico cineasta dinamarquês Lars von Trier. Essa frase de efeito ilustra perfeitamente a filmografia desseenfant terrible do cinema contemporâneo. Trier, filme após filme, desafia o espectador, brinca com suas emoções, crenças, o faz sofrer. Sem medo, ele explora tudo o que há de vil, torpe e obscuro no ser humano. A nobreza, a pureza e a inocência também estão presentes em suas obras nas figuras de heroínas de coração puro como Bess (Ondas do Destino), Grace (Dogville) e Selma (Dançando no Escuro). Figuras sacrificiais. Os filmes de Lars von Trier parecem combinar tortura psicológica e um brilhante exercício de estilo. Gênio contestado por uns, aclamado por outros, Lars von Trier é um cineasta profundamente visceral, pessimista e ousado. Único. Ninguém sai incólume de seus filmes. Um imenso desconforto nos acompanha do início ao fim e, por vezes, mesmo após a projeção.
Lars von Trier foi, ao lado do também incrível Thomas Vinterberg,  um dos fundadores do Dogma 95, movimento cinematográfico vanguardista, que pregava um certo “voto de castidade”, ou seja, o cumprimento de certas regras na prática do cinema. O movimento procurava por em primeiro plano a história, as performances e os temas, banindo o uso de efeitos especiais e o abuso dos recursos tecnológicos. Os Idiotas (1998), filme cult do diretor, é tido como um dos principais exemplares desse movimento. Outras grandes realizações do diretor são Ondas do Destino (do qual falaremos a seguir), Dogville (famoso por ter sido filmado em um palco e com um cenário nada convencional que consistia em marcas no chão e alguns objetos), Dançando no Escuro (musical premiado com a Palma de Ouro em Cannes e brilhantemente estrelado pela cantora Björk), Anticristo (um dos filmes mais polêmicos e radicais do diretor, um “filme de terror freudiano”) e Melancolia (seu último projeto a sair no cinema, altamente existencialista).
Lars von Trier costuma trabalhar em torno de temas e trilogias. Assim ele criou a trilogia “do coração de ouro”, composta por Dançando no EscuroOs Idiotas e Ondas do Destino. A trilogia dos Estados Unidos (terra das oportunidades), composta por DogvilleManderlay e o ainda não produzido Wasington. Da sua mais recente trilogia, a da Depressão, fazem parte os filmes AnticristoMelancolia e o ainda inédito Ninfomaníaca. Nada menos do que nove filmes do diretor integraram a seleção oficial de Cannes desde 1984. O cineasta é também famoso por querer tirar o máximo de suas protagonistas, em um método de direção intenso que costuma levar os atores à exaustão. Björk, após trabalhar com ele, chegou a afirmar que não faria cinema novamente. Nicole Kidman também se mostrou “traumatizada” depois de trabalhar com Trier e não participou da sequência de Dogville. Sádico ou não, o diretor consegue tirar o melhor de seus atores e seus filmes contêm performances impressionantes. Não é por acaso que três atrizes dirigidas por ele ganharam  prêmios em Cannes (Björk, Charlotte Gainsbourg e Kirsten Dunst). Já Emily Watson concorreu ao Oscar de Melhor Atriz por Ondas do Destino. Trier foi indicado ao Oscar apenas uma vez, na categoria de Melhor Canção (!) por Dançando no Escuro.
Lars von Trier é também uma figura curiosa em outros aspectos. Além de ter crises de depressão, o cineasta é também um assumido “medroso”. Ele tem diversas fobias, como medo de voar (ele nunca foi aos Estados Unidos, por exemplo). Pelo visto, ele também tem poucas “aptidões sociais”. Durante uma entrevista coletiva no Festival de Cannes de 2011, o diretor fez uma brincadeira infeliz sobre Hitler que gerou grande repercussão. A partir de então, o diretor tornou-se persona non grata no festival. Um detalhe interessante de sua biografia é que sua mãe assumiu, no leito de morte, que o verdadeiro pai do cineasta era um músico e que ela engravidou desse homem para que o filho tivesse “genes artísticos”. 

Nenhum de vocês tem o direito de mandar Bess para o inferno!
Ondas do Destino é um dos filmes mais interessantes e tocantes do cineasta dinamarquês. O longa-metragem tem uma dimensão épica, tanto em sua estrutura, quanto em sua duração. Dividido em nove partes (sete capítulos, um prólogo e um epílogo), Ondas do Destino é ambientado nos anos 70, na Escócia. Grande parte da ação se passa num pequeno vilarejo dominado por cristãos conservadores e fanáticos. De certa forma, o comportamento dos habitantes desse lugarejo é controlado pelos beatos, os anciões do lugar. A vida, para eles, não é feita para a diversão, mas para servir a Deus. Além disso, a finalidade do sexo é unicamente a procriação e as mulheres ocupam um lugar de submissão perante os homens, não podendo nem mesmo falar na igreja. Trata-se também de uma comunidade fechada em que estrangeiros não são bem-vindos. A ameaça do inferno e a esperança da salvação pairam sobre a existência dessas pessoas, cujas vidas são regidas pela religião.
Bess é um fruto dessa comunidade, uma jovem simplória, de bom coração. Ela passou por uma grave crise quando o irmão morreu e, desde então, não foi a mesma. Quando a moça se apaixona por Jan, não-crente e operário em uma refinaria, a comunidade entra em choque. Apesar da desaprovação da maioria, Bess se casa. A moça descobre, assim, as delícias do casamento e do sexo e experimenta uma felicidade plena. Quando precisa separar-se do marido, ela entra em desespero e, consequentemente, em depressão. Ficar longe do amado é a coisa mais difícil para ela. Certo dia, uma tragédia acontece em sua vida. Após um grave acidente, Jan fica paralisado do pescoço para baixo. Em estado crítico, ele pede para que Bess faça amor com outro homem. Movida por uma fé incalculável, Bess passa a acreditar que de alguma forma seu sacrifício possa curar o marido. A medida em que a condição de Jan piora, ela vai tomando atitudes mais desesperadoras e grandiosas. Ao final, o filme toma uma dimensão cósmica comovente.

Eu não faço amor com eles, eu faço amor com Jan e o salvo da morte.
Um dos aspectos mais importantes de Ondas do Destino é a relação da protagonista com Deus, com a espiritualidade e com a fé. Lars von Trier mantém durante grande parte do filme uma certa ambiguidade: Bess é de fato um instrumento de salvação, uma pessoa iluminada por Deus, nutrindo com Ele uma especial forma de comunicação? Ou ela sofre de algum tipo de distúrbio, loucura? A que podemos atribuir seus impulsos autodestrutivos? Na parte final do filme, o cineasta parece optar por uma das interpretações. Louca ou profeta, a figura de Bess assemelha-se certamente a personagens bíblicos como Maria Madalena e o próprio Jesus Cristo. Afinal de contas, ela também atravessa um calvário e se sacrifica pelo bem de um pecador. Ao desafiar a lei imposta pela comunidade em que vive, Bess se transforma em uma pária e passa a ser perseguida e discriminada pelos seus. Há também nessa personagem um pouco da mártir católica Joana d’Arc. A maneira com a qual Lars von Trier filma o rosto expressivo de Emily Watson nos remete ao que Carl Theodor Dreyer fez com Maria Falconetti, no clássico A Paixão de Joana d’Arc (1928). Trier é, por sinal, um grande admirador de Dreyer, que também era dinarmaquês.
Impresssiona também no filme o uso constante da câmera na mão, o que confere um tom de documentário ao filme, além de gerar certo desconforto e apreensão no espectador. A colaboração do diretor com Robby Muller, diretor de fotografia, é extremamente bem-sucedida. Ondas do Destino não só provoca fortes emoções no espectador, como também pode gerar um desconforto físico, náuseas como se estivéssemos em mar aberto (o título ganha, assim, mais uma dimensão).

Deixe-me morrer! Eu sou mau na cabeça!
É difícil falar de Ondas do Destino, sem louvar a interpretação de Emily Watson. A performance da atriz inglesa pode ser comparada a uma força da natureza, a um soco no estômago. Watson confere uma imensa humanidade, vulnerabilidade e, principalmente, veracidade a uma personagem que poderia facilmente soar ridícula ou inverossímil. A câmera parece nutrir um caso de amor com o rosto da atriz e o espectador inevitavelmente se apaixona por Bess. O elenco ainda conta com os excelentes Stellan Skarsgård e Katrin Cartlidge.
Ondas do Destino fala de amor e de fé de uma maneira nada convencional. Trata-se de uma jornada emocional única, a que somente um diretor destemido e ousado como Lars von Trier poderia nos levar. 

Eu te amo não importa o que está na sua cabeça.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Clássicos da Cinemateca - A Noviça Rebelde

Raindrops on roses and whiskers on kittens 
Bright copper kettles and warm woolen mittens 
Brown paper packages tied up with strings 
These are a few of my favourite things 

The hills are alive with the sound of music / With songs they have sung for a thousand years / The hills fill my heart with the sound of music
Com o passar do tempo, muitas pessoas passaram a se referir à Noviça Rebelde como sendo um filme bobo, açucarado, fora de moda, cafona. Tais adjetivos escondem, por vezes, uma resistência ao gênero musical, principalmente àquele praticado na Era de Ouro de Hollywood. Quem não aprecia o gênero dificilmente dará valor a este clássico, que é, sem dúvida, um de seus exemplares mais bem sucedidos. É compreensível que certas pessoas torçam o nariz ao ver uma freira correr pelas colinas austríacas de braços abertos cantando a felicidade e o poder da música. Afinal, estamos acostumados a enxergar o mundo por uma ótica menos idealizada e mais pessimista, fruto de todos os problemas que nos rondam.
A Noviça Rebelde, ao contrário, se assemelha a um conto de fadas e é uma celebração otimista da vida, do amor, da família e, principalmente, da música. Alguns cinéfilos, hoje em dia, chegam a classificar este filme como sendo um guilty pleasure, como se fosse realmente um pecado gostar do musical. É comum que alguns filmes, principalmente os clássicos, se cristalizem na memória universal e que tenhamos ideias preconcebidas sobre eles, sem nos preocuparmos em (re)vê-los. Todos esses preconceitos e análises apressadas parecem camuflar o fato de que A Noviça Rebelde é um grande filme e merece a chance de ser redescoberto.

Doe, a deer, a female deer / Ray, a drop of golden sun / Me, a name I call myself / 
Far, a longer way to run / Sew, a needle pulling thread /  La, a note to follow So /  Tea, I drink with jam and bread / That will bring us back to Do,Do Do Do
A Noviça Rebelde foi um imenso sucesso de público, liderando o box office de 1965 e desbancando o recorde de bilheteria que pertencia, até então, a E o Vento levou (1939). O sucesso comercial foi tamanho, que dizem ser este o filme responsável por salvar o estúdio Fox, após o desastre financeiro que foi o caríssimo Cleópatra (1963). O musical é um dos poucos filmes a liderar a bilheteria do ano de seu lançamento e ganhar o Oscar de Melhor Filme (feito realizado, por exemplo, por Titanic e O Senhor dos Anéis – O Retorno do Rei). Por falar em Oscar, A Noviça Rebelde foi indicado a dez estatuetas, tendo levado cinco (Filme, Diretor, Edição de Som, Montagem e Trilha Sonora). A recepção da crítica foi mista. Já naquela época, a trama e músicas açucaradas incomodavam alguns críticos, como Pauline Kael, que foi uma das mais ferrenhas detratoras do filme. Outros críticos, em contrapartida, aclamaram as incontestáveis qualidades técnicas e a trama envolvente do musical.

When the dog bites, when the bee stings / When I'm feeling sad / I simply remember my favourite things / And then I don't feel so bad
Muitos não sabem, mas a história do filme é baseada em eventos reais. O filme de 1965 é uma adaptação do musical de mesmo nome produzido na Broadway em 1959. A peça, por sua vez, foi baseada no livro de memórias de Maria Augusta von Trapp (que no filme é interpretada por Julie Andrews) e em sua adaptação cinematográfica realizada na Alemanha em 1956, Die Trapp-Familie. Em 1958, foi lançada sua sequência Die Trapp-Familie in Amerika(1958). A Noviça Rebelde conta a história de Maria, uma jovem noviça que é chamada para cuidar dos sete filhos de um rígido capitão austríaco, Georg von Trapp, por quem acaba se apaixonando. Apesar de ser baseado em um caso verídico, o filme possui diversas discrepâncias com relação ao que de fato ocorreu. Obviamente, muito no filme foi romantizado. Por exemplo, em suas memórias, Maria assume que não estava apaixonada por Georg quando se casou com ele. Ela também não foi contratada para cuidar de todas as crianças, mas apenas da caçula, que doente, precisava de lições em casa.
Outras curiosidades: a entrada da família no ramo musical deveu-se sobretudo à precária situação financeira de Georg após investimentos desastrosos. A casa onde morava a família era muito mais modesta do que o palacete retratado no filme. A maioria dos nomes das crianças foram alterados para o filme, assim como certas datas. O personagem de Max Detweiler é inteiramente ficcional. Outra discrepância apresentada no musical diz respeito ao temperamento de Georg, mostrado como um homem extremamente severo, distante e sem senso de humor. Na realidade, o capitão era conhecido por ser carinhoso e bastante presente na vida das crianças. Segundo o depoimento de uma das filhas do capitão, era, na verdade, a madrasta Maria que tinha o temperamento mais difícil. A família von Trapp não teve nenhum controle sobre a maneira como eram representados no cinema, uma vez que haviam vendido os direitos da história para um produtor alemão nos anos 50. Este, por sua vez, os vendeu para Hollywood.

Edelweiss, Edelweiss / Every morning you greet me / Small and white, clean and bright / You look happy to meet me
A escolha do diretor de A Noviça Rebelde é um epopeia a parte. Muitos diretores foram sondados e convidados pelos produtores Darryl e Richard D. Zanuck para assumir o projeto (dentre eles, Robert Wise) e todos disseram "não". William Wyler, grande nome do cinema clássico norte-americano, finalmente aceitou a tarefa e começou a escolher locações e a modelar o script. No entanto, o diretor acabou  por sentir-se inadequado para dirigir o filme, ainda mais que seu coração estava em outro projeto, a adaptação do romance O Colecionador, que veio a se tornar um filme cult. Wyler foi liberado pelos produtores e Robert Wise aceitou substituir o colega.
Robert Wise foi, certamente, um dos diretores mais versáteis de Hollywood. Ele é geralmente conhecido pelos dois musicais que dirigiu, Amor Sublime Amor e A Noviça Rebelde, seus filmes mais populares e famosos, pelos quais ganhou dois Oscars de diretor. No entanto, ele não era nenhum especialista no gênero. Alguns críticos tendem a considerar que o seu melhor filme foi, na verdade, O Dia em que Terra Parou (1951), tido como uma obra-prima de ficção científica e um dos filmes mais influentes do gênero. Wise também dirigiu os ótimos Jornada das Estrelas: O Filme (1979) e o filme de guerra O Canhoneiro do Yang-Tsé (1966). Wise chegou a ser considerado um diretor menos autoral por se submeter às vontades do estúdio e imprimir pouco de seu estilo às  suas obras. Novas críticas, no entanto, valorizam o profissionalismo, a habilidade e o preciosismo do diretor, que soube lidar com os mais diferentes gêneros e orçamentos. 

You are sixteen going on seventeen / Baby, it's time to think / Better beware, be canny and careful / Baby, you're on the brink
A Noviça Rebelde é um testemunho do talento de Wise, que cria um filme cativante, pulsante, combinando brilhantemente drama, humor, romance e até mesmo sequências de ação. Além de tudo, nunca a paisagem austríaca apareceu tão bela no cinema (com o auxílio, claro, da excelente fotografia de Ted D. McCord). A grandiosa sequência de abertura do musical é certamente um dos momentos mais célebres do cinema. Extremamente difícil de ser realizada, a sequência foi filmada com a ajuda de um helicóptero. Segundo Julie Andrews, uma das maiores dificuldades durante as filmagens era se manter de pé devido a poderosa corrente de ar gerada pelo helicóptero.
O roteiro de Ernest Lehman lida bem com a grandiosidade da história, sabendo dosar o aspecto histórico do filme (a ascenção do nazismo como pano de fundo) e a história de amor dos protagonistas. O coração do filme é, no entanto, sua trilha sonora, composta pelas belíssimas canções de  Richard Rodgers e Oscar Hammerstein II: "Edelweiss", "My Favorite Things", "Climb Ev'ry Mountain", "Do-Re-Mi", "Sixteen Going on Seventeen", "The Sound of Music”, entre outras músicas que grudam na cabeça. Obviamente, essas músicas não são as mesmas que a verdadeira família von Trapp cantava em suas apresentações.
O grande elenco do filme é comandado pela incomparável Julie Andrews (indicada ao Oscar), com seu ótimo timing cômico, sua jovialidade e sua belíssima voz. O elenco ainda conta com os excelentes Christopher Plummer (que é dublado nos números musicais por  Bill Lee), Peggy Wood (indicada ao Oscar), Eleonor Parker, Charmian Carr e um grupo adorável de atores mirins.
Apesar de ser um clássico amado por diversas gerações, A Noviça Rebelde, é, hoje em dia, um filme pouco assistido, principalmente, pelos jovens cinéfilos. É fácil dizer que o filme envelheceu mal sem de fato lhe dar uma chance. Na realidade, o musical é um prato cheio para quem ama cinema e, ainda hoje, pode arrebetar muitos corações. O American Film Institute listou o filme como sendo um dos 100 melhores de todos os tempos (40ª posição) e um dos melhores musicais (4ª posição).

So long, farewell, auf wiedersehen, good night / I hate to go and leave this pretty sight / So long, farewell, auf wiedersehen, adieu / Adieu, adieu, to yieu and yieu and yieu

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Clássicos da Cinemateca - Mulheres à beira de um ataque de nervos

“É muito mais fácil aprender mecânica do que psicologia masculina.”

"Coleciona armas?"
Poucos cineastas são capazes de retrarar o universo feminino com a sensibilidade e irreverência de Pedro Almodóvar. A maioria dos filmes do diretor espanhol giram em torno de personagens femininas. Da mente do cineasta saíram personagens fortes, tragicômicas, desafiadoras, coloridas. Como esquecer Pepa (Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos), Kika (Kika), Raimunda (Volver), Manuela, Huma e Irmã Rosa (Tudo Sobre Minha Mãe), Rebeca e Becky (De Salto Alto) e tantas outras mulheres impressionantes que habitam as narrativas de Almodóvar?
Há algum tempo, a indústria cinematográfica vem sendo marcada por uma relativa carência de papéis interessantes para mulheres, algo que escape dos perfis de ninfeta, esposa e mãe. Sobre esse fenômeno, Almodóvar afirmou certa vez: Nesta última década você pode contar o número de filmes de Hollywood que giram em torno de mulheres. Os estúdios esqueceram que as mulheres são fascinantes. Deve-se lembrar que a imensa maioria dos profissionais do cinema (diretores, roteiristas etc.) ainda são homens. Almodóvar, no entanto, sempre soube escrever papéis interessantes para mulheres. Não se trata de um cinema feminista, mas de um cinema que exalta o feminino. Não é por acaso que ele nutriu parcerias formidáveis com grandes atrizes como Carmen Maura, Penélope Cruz, Marisa Paredes, Victoria Abril e outras.
Não se deve ceder à tentação de vincular o talento de Almodóvar em representar a psiquê e o universo femininos à orientação sexual do diretor (assumidamente homossexual), como fazem alguns estudiosos. Trata-se de uma explicação simplista. O diretor fala de seu fascínio pelas mulheres da seguinte forma: “mulheres são mais espetaculares como objetos dramáticos, elas têm uma grande variedade de registros”.

“Nenhuma mulher é perigosa se você sabe como tratá-la.”
Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988) é um dos filmes de maior sucesso de Almodóvar e o primeiro a lhe garantir reconhecimento internacional, assim como sua primeira indicação ao Oscar (Melhor Filme em Língua Estrangeira). O filme acompanha dois dias na vida de Pepa (Carmen Maura), uma atriz/dubladora que se vê às voltas para encontrar o amante que a abandonou. Neste filme, é possível identificar muitos dos elementos que fazem parte do estilo único de Almodóvar. O cineasta combina o melodrama à comédia farsesca, flertando constantemente com o absurdo e o nonsense. Os diálogos rápidos e as tiradas cômicas nos fazem lembrar as comédias hollywoodianas do anos 50. O resultado é uma obra-prima deliciosamente divertida.
Como um grande admirador do cinema clássico, Almodóvar faz em seus filmes diversas referências e homenagens à era de ouro de Hollywood, seja estilisticamente ou por alusões diretas. Uma das primeiras cenas de Mulheres..., mostra a dublagem de Johnny Guitar (famoso faroeste americano protagonizado por Joan Crawford, que interpreta uma das personagens femininas mais fortes do cinema clássico americano). Na cena em que Pepa observa os moradores de um prédio, temos, ao que tudo indica, uma outra homenagem, desta vez, a Janela Indiscreta, de Hitchcock, com direito à presença da bailarina sensual. Existe uma dimensão metalinguística no filme, uma vez que o mundo cinematográfico está também presente na narrativa e que Pepa e Iván se utilizam de seus talentos como atores para enganar e convencer os outros personagens. 

“Você se importa de ficar? Tem mulher demais para uma cobertura tão grande.”
Geralmente, os filmes de Almodóvar são facilmente identificáveis. Dos diretores contemporâneos, ele é um dos que imprime mais fortemente um estilo e uma identidade visual as suas obras. Em Mulheres..., Almodóvar não teme o exagero e abusa de uma paleta variada de cores fortes, com destaque para o vermelho quase sempre associado à protagonista. O filme é um carnaval de estampas, cores, além de cenários e figurinos “cafonas” ou extravagantes. Almodóvar não teme o exagero, algo que se vê não só na estética do filme, mas também nas atitudes das personagens, nas repetições (trocas constantes de figurino, encontros e gestos repetidos), na trilha sonora excessivamente melodramática e na abundância de closes em detalhes (unhas, sapatos, peças do vestuário feminino etc). Todos esses elementos são fundamentais para o processo de estilização do filme, nada é gratuito. Mulheres... destaca-se também por ser um filme leve e mais acessível do diretor, que já abordou temas muito mais pesados em outras obras.

“Os xiitas vão sequestrar o avião das 10 que vai para Estocolmo e desviá-lo para Beirute para libertar uns amigos presos”.
Um dos maiores charmes de Mulheres é certamente o que ele tem de inusitado. Essa característica é observada no cenário (o que uma bola colorida está fazendo no terraço de Pepa? E o que dizer do maravilhoso taxi-mambo?), nas peripécias da trama e também nos diálogos. Esses são, por sinal, inspiradíssimos. É difícil não rir, por exemplo, quando a amiga de Pepa, que teve um envolvimento trágico com um terrorista xiita, se lamenta com certa inocência: “Veja como o mundo árabe me tratou”. E quando Pepa dispara, após outra personagem ter lhe dito que havia perdido a virgindade num sonho: “Você perdeu aquela cara dura, típica das virgens. As virgens são tão antipáticas”. O filme, no entanto, não seria tão divertido se não tivesse um elenco (predominantemente feminino) afiado, encabeçado pela sensacional Carmen Maura. A atriz brigou com o diretor durante as filmagens e só retomou a parceria anos depois em Volver. Além de Maura, brilham Julieta Serrano, María Barranco, Rossy de Palma e o então jovem Antonio Banderas.
Outros cineastas já foram reconhecidos pela habilidade em retratar o universo feminino. Podemos citar George Cukor e Rainer Werner Fassbinder, por exemplo. Almodóvar, em Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos, faz um retrato irreverente desse universo. O filme ocupa, ao lado de Tudo Sobre Minha Mãe (1999) e Fale Com Ela (2002), um lugar especial na filmografia de Almodóvar, sem dúvida, um dos maiores ícones do cinema contemporâneo. 

“Se importam se eu me sentar? Se tenho de abrir meu coração, prefiro estar confortável. Hoje tive um dia muito movimentado.”

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Clássicos da Cinemateca - A Noite

Hoje quando acordei você ainda dormia. Pouco a pouco
acordando senti sua respiração leve. E através dos
cabelos que escondiam seu rosto vi seus olhos fechados e
senti uma comoção subindo a garganta. Tive vontade de
gritar e acordá-la, pois o seu cansaço era profundo e
mortal. Na penumbra, a pele dos seus braços e pescoço
era viva e eu a sentia morna e seca. Queria passar os
lábios nela, mas o pensamento de perturbar seu sono e
de ainda tê-la em meus braços me impedia. Preferia tê-la
assim como algo que ninguém tiraria de mim, pois só eu
a possuía. Uma imagem sua para sempre…

…Além do seu rosto, via algo mais puro e mais profundo onde eu me refletia. Eu via
você numa dimensão que englobava todo o tempo da minha vida. Todos os anos futuros
e os que vivi antes de conhecê-la, mas já pronto para encontrá-la…
 
A Itália é, sem dúvida, um berço de grandes cineastas. O país produziu um grande número de diretores geniais como Federico Fellini, Pier Paulo Pasolini, Vittorio de Sica, Luchino Visconti, Roberto Rossellini e, é claro, Michelangelo Antonioni. O último foi certamente um dos cineastas mais intrigantes e provocadores do cinema italiano. Dentre suas obras-primas mais conhecidas, estão Blow Up – Depois Daquele Beijo (1966) e a trilogia da incomunicabilidade, formada por A Aventura (1960), A Noite (1961) e O Eclipse (1962). O opus central da trilogia não compartilha a mesma fama e status dos outros dois filmes, considerados por muitos especialistas como as melhores realizações do diretor. Devo confessar, no entanto, que A Noite tem um espaço especial na minha memória afetiva. Ele foi o primeiro filme de Antonioni a que assisti e ainda me lembro do impacto, misto de estranhamento e fascinação, que ele teve sobre mim, ainda adolescente. E não estou sozinho nessa. Curiosamente, o filme também exerceu um grande fascínio sobre o grande Stanley Kubrick. Em 1963, quando uma revista americana de cinema pediu ao cineasta para listar os seus filmes favoritos, ele incluiuA Noite no seu top 10. A Noite foi premiado com o Leão de Ouro no Festival de Berlim em 1961.
 
…Este era o pequeno milagre de um despertar. Sentir pela primeira vez que você me
pertencia não só naquele momento, e que a noite era eterna ao seu lado…
 
A Noite focaliza algumas horas na vida de um casal, o espaço de uma tarde até o amanhecer do dia seguinte. Giovanni (Marcello Mastroianni) é um escritor em ascensão que acaba de lançar um livro. Lídia (Jeanne Moreau) é a sua esposa. O filme pode ser dividido em cinco partes, que correspondem a diferentes momentos da “via crucis” do casal. Cada estação dessa via crucis é marcada por pequenos acontecimentos significativos e simbólicos.
 
A “primeira estação” corresponde à visita que os dois personagens fazem a um amigo, vítima de um câncer terminal, no hospital em que ele está internado. Os protagonistas se veem assim diante da presença irremediável da morte. Esse encontro é particularmente doloroso para Lídia. Muito do estado meditativo da moça durante o filme pode ser atribuído a essa visita, ao que ela desperta na personagem. Talvez ela tenha se dado conta da efemeridade da vida, talvez ela se questione sobre o que foi feito de sua vida e sobre o seu futuro. Descobriremos também, ao final do filme, que ela tinha uma ligação especial com o doente. A bela interpretação do ator austríaco Bernhard Wicki (também foi um ótimo diretor), na pele do amigo internado, faz dessa cena um dos momentos mais tocantes do filme. Em seguida, enquanto Lídia espera o marido no estacionamento, este tem um encontro erótico com uma jovem ninfomaníaca que também está internada no hospital. Trata-se de uma cena perturbadora, tratada com um extremo requinte visual por Antonioni. Giovanni se dá conta do caráter doentio, selvagem e animalesco desse encontro. Deixar-se seduzir pela garota talvez seja uma maneira desesperada de se sentir vivo.
 
A segunda estação corresponde à festa de lançamento do livro de Giovanni e ao passeio de Lídia pelas ruas de Milão. Sentindo-se desconfortável na festa, Lídia escapa discretamente da confraternização e começa a andar pelas ruas da cidade. No caminho, ela cruza alguns homens desconhecidos e se mostra satisfeita em despertar o olhar deles (querendo se sentir viva, desejada?). Ela entra em uma propriedade após ouvir uma criança que chora e tenta consolá-la (o filho que ela nunca teve?). 
 
À medida que Lídia vai se encaminhando para os limites da cidade, novos encontros são realizados. Ao se deparar com a uma luta violenta, em uma várzea, a moça se desespera e tenta acabar com a briga. A reação de Lídia pode simbolizar a rejeição da personagem à luta pela sobrevivência. Lídia é um indivíduo da não-ação. Ela foge repetidamente de qualquer tipo de engajamento (ela não consegue ficar no quarto do hospital até o fim da visita, o mesmo ocorre na festa de lançamento do livro, ela não consegue consumar uma relação infiel, não consegue se separar do marido etc.). Quando um dos lutadores se mostra interessado nela, ela foge. No entanto, ela olha para trás, talvez desejando que ele ainda a seguisse. Por fim, ela encontra um grupo de garotos que soltam pequenos foguetes e fica completamente encantada com o espetáculo (um retorno ao estado infantil, ao deslumbramento?).
 
…No calor do seu sangue, dos seus pensamentos e da sua vontade, que se confundia
com a minha. Por um momento, entendi o quanto a amava Lidia e foi uma sensação tão
intensa que meus olhos se encheram de lágrimas…

Na terceira estação, marido e mulher vão ao um pub, onde assistem a uma erótica apresentação de uma dançarina/stripper/equilibrista. Impressiona o contraste entre a qualidade e sensualidade da performance e o profundo tédio e falta de excitação demonstrados pelos personagens. A quarta e mais longa estação, o momento mais célebre do filme, corresponde à festa de um milionário à qual os protagonistas vão depois de passar pelo pub. A mansão do milionário é recheada de uma elite bastante excêntrica. Antonioni, que se considerava um marxista intelectual, se diverte ao pintar esses indivíduos superficiais e ridículos, frutos do capitalismo. Assim como ocorre durante todo o filme, Lídia se encontra isolada, desconfortável em meio às outras pessoas. Ela tem consciência da sua solidão e da sua inadequação. A personagem passa boa parte da festa tentando fugir dos convidados. Giovanni não faz nenhuma questão de fazer companhia à esposa, abandona-a e encontra Valentina, a sedutora filha do anfitrião (vivida de maneira exemplar pela belíssima Monica Vitti, musa do diretor).
 
Fascinado pela jovem, Giovanni se entrega novamente aos seus impulsos adúlteros. A moça, que também se sente atraída pelo escritor, não demora a descobrir que ele é casado e passa a evitá-lo. Ela também se revela uma personagem melancólica e atormentada, a típica “pobre menina rica”. Dois jogos de gato e rato se instauram na festa: Giovanni “persegue” Valentina e um homem misterioso segue incessantemente Lídia. Após encontros e desencontros, Lídia, Giovanni e Valentina se reúnem num mesmo quarto, numa das cenas mais belas do filme. Na última estação, marido e mulher saem da festa já ao amanhecer. Trata-se do clímax do longa-metragem, o momento, onde finalmente certas verdades serão ditas, onde uma forma de comunicação pode ser tentada. O desfecho do filme é comovente, ainda que o destino dos personagens permaneça incerto.
 
…Eu pensava que isso jamais deveria ser como esse despertar. Senti-la não minha…
mas uma parte de mim. Uma coisa que respira comigo e que nada pode destruir, a não
ser a indiferença de um hábito que considero a única ameaça…
 
David Bordwell, grande historiador do cinema, disse certa vez que, nos filmes de Michelangelo Antonioni, "férias, festas e atividades artísticas são esforços vãos para esconder a falta de propósito e emoção dos personagens”. Ainda que possa ser discutida, a máxima do historiador toca numa questão importante a respeito do estilo do diretor. O cinema de Antonioni é um cinema de personagens e grande maioria deles se caracteriza por um certo vazio, um certo torpor existencial. Em A Noite, os dois protagonistas atravessam uma via crucis dominada pelo desolador sentimento do tédio, até que finalmente chegam a uma situação-limite, em que devem se confrontar com o destino de seu casamento decadente.
 
Dominados por esse torpor alienante, os personagens se mostram desapegados com a vida, com a existência, um com outro e até mesmo com as próprias escolhas. Temos a impressão que eles vagam sem direção, sem rumo, à espera de algo que os resgate desse torpor que os assombra e que pesa sobre suas existências. Mas eles não são imunes à dor, nem isentos de emoção, já que sofrem com a própria impassividade, como se estivessem desconfortáveis na própria pele. A incomunicabilidade que nomeia a trilogia se encontra na impossibilidade de expressar seus sentimentos, de distingui-los, de se conhecer e de se comunicar com o outro. Antonioni se interessa em mostrar a evolução desses personagens-fantasmas, sem consistência. O diretor italiano disse, certa vez, que o que acontece ao redor de seus personagens não tem importância. O que importa mesmo é o que se passa no interior deles. Segundo o cineasta, “as pessoas pensam que os acontecimentos de um filme são tudo o que o filme é. Isso não é verdade. Um filme é seus personagens, o que muda dentro deles”.
 
…Então, você acordou, e sorrindo, ainda adormecida me beijou, e eu senti que não
havia nada a temer. Que seríamos sempre, como aquele momento, unidos por algo que
é mais forte que o tempo e o hábito…

Não é difícil constatar que Antonioni é um cineasta pessimista. Ele tem uma visão decadentista do mundo e das coisas. Em A Noite, encontramos a obsessão do diretor pela decadência dos valores nacionais face ao capitalismo do pós-guerra e ao hedonismo de uma elite formada por seres atrofiados emocionalmente. Antonioni mostra o indivíduo perdido, desconectado de si mesmo em meio a um ambiente cada vez mais urbanizado, verticalizado (vide a bela sequência dos créditos iniciais) e tecnológico. Em certo momento do filme, um dos personagens diz que os hospitais estão cada vez mais parecidos com discotecas. Antonioni denuncia assim uma sociedade que é refém do prazer, de um tipo de prazer que só se adquire com dinheiro. 
 
Antonioni escalou duas lendas do cinema para viverem os dois papéis principais: os excelentes Marcelo Mastroianni e Jeanne Moreau. Os dois atores expressam brilhantemente a solidão, o desamparo e o tédio de seus personagens, seres amputados emocionalmente. A atriz francesa, principalmente, brilha ao captar a resignação, as dúvidas e a angústia de Lídia. E ela faz muito apenas com o olhar. No final das contas, A Noite é um filme sobre um casal que se distanciou tanto que eles nem mais se reconhecem. Eles esqueceram como se amar e a razão pela qual estão juntos.
 
Ao assistir ao filme, você corre o risco de ficar tão entediado quanto os personagens (como brincam alguns críticos). No entanto, talvez você descubra, como eu, um cinema extremamente refinado, inteligente, questionador e humano.
 
- De quem é essa carta? – É sua.



terça-feira, 30 de julho de 2013

Clássicos da Cinemateca - Viagem à Itália

Percebi pela primeira vez que… somos como estranhos um para o outro. 
 
Diga! Eu quero ouvir você falar que me ama.
Grande fracasso de bilheteria, esnobado e ridicularizado no ano de seu lançamento, Viagem à Itália (1954), dirigido pelo cineasta italiano Roberto Rossellini, foi tido por boa parte dos críticos da época como uma aberração por focalizar a vida de um casal de classe média-alta (ainda por cima inglês), entediado, aborrecido e desocupado, em uma trama em que nada acontece e que não vai a lugar nenhum. "Quanto desperdício escalar Ingrid Bergman e George Sanders, duas estrelas consagradas, num filme como esse!" – pareciam exclamar os críticos em uníssono. Como já sabemos, na história do cinema, o mundo dá voltas. Viagem à Itália foi resgatado do limbo pelos críticos do Cahiers du Cinéma, que o alçaram à condição de obra-prima: “o primeiro filme moderno”. Tais críticos (ninguém menos que Jean-Luc Godard, Jacques Rivette, François Truffaut e Claude Chabrol) iniciariam no final dos anos 50 o movimento da Nouvelle Vague, um dos mais importantes da história do cinema. Hoje, Viagem à Itália é visto como um marco cinematográfico, uma obra-prima essencial que influenciou toda uma geração de grandes cineastas. 

Eu queria que você descansasse. Não me passou pela cabeça que era tão chato para você ficar sozinho comigo.
Em Viagem à Itália, Katherine (Ingrid Bergman) e seu marido Alex (George Sanders) fazem uma viagem a Nápoles para acertar a venda de uma propriedade que um tio deixara de herança. Essa viagem de negócios (e de prazer, como acrescenta Katherine) acaba por revelar o desgaste da relação do casal. Ao sair da rotina doméstica, os dois personagens se veem diante do desafio de suportarem a companhia um do outro. A convivência revela-se cada vez mais difícil à medida que o filme avança. Ambos começam a questionar suas escolhas, seus sentimentos e a possibilidade de continuarem casados. O conflito de personalidades contribui para o distanciamento do casal. Se Alex é um homem extremamente cínico, crítico e seco, Katherine é uma mulher carente, romântica e frustrada. O maior problema do casal, no entanto, é a dificuldade que ambos têm de expressar seus reais sentimentos. Um jogo de forças, provocações e ciúmes se instaura entre eles, já que nenhum dos dois quer dar o braço a torcer e assumir seus medos e angústias.
 
Essa é a primeira vez que estamos verdadeiramente sozinhos desde que nos casamos.
É interessante como Rossellini estabelece uma relação entre o descobrimento de um território novo, de uma cultura diferente e a irrupção da crise no casamento dos protagonistas. A Itália é um ambiente completamente exótico (por vezes inóspito) para Alex e Katherine e a viagem os deixa claramente ansiosos e nervosos. O casal, habituado à ordem e à serenidade de sua rotina na capital inglesa, se vê repentinamente mergulhado no caos e na vivacidade do modo de vida italiano. Alex, um homem de negócios, que aparentemente vive para o trabalho, é obrigado a ficar à toa, o que é definitivamente angustiante para ele. Algo parecido ocorre com Katherine. Mais aberta à cultura local, ela tenta ocupar seu tempo com passeios turísticos, mas se vê atormentada pela solidão. Fora de seu habitat natural, os personagens se sentem vulneráveis. A descoberta de um novo mundo, o encontro com o Outro, provoca o olhar dos personagens para a sua própria individualidade e para o tipo de relação que eles consolidaram ao longo dos anos. O ócio e o tédio que eles experimentam durante a viagem contribuem para que eles se confrontem com certas questões que andavam adormecidas.
 
Após oito anos de casamento, parece que a gente não conhece nada um sobre o outro.
Rossellini confere um tom meditativo e misterioso a seu filme. O diretor foge da dramatização e do exagero, focalizando o crescente desconforto dos personagens e a dolorosa tomada de consciência do casal sobre a realidade de seu casamento. As manifestações culturais, a religião, as crenças locais são exploradas brilhantemente pelo cineasta. O choque cultural e a alteridade são fontes de estranhamento e reflexão para os personagens. A fertilidade das mulheres italianas faz com que Katherine questione sua decisão de não ter filhos. A exumação dos corpos, moldados em gesso, de um casal, em Pompeia, emociona e perturba os personagens e os fazem encarar o fato de que talvez não terminem juntos os seus dias. Os corpos dos amantes petrificados, vítimas do Vesúvio, é o próprio símbolo do amor. Trata-se de uma imagem terrivelmente comovente para Alex e Katherine, que se veem às vésperas de uma separação. Eles ainda se amam, obviamente, mas o orgulho e a dificuldade de comunicação os separam. 
 
Em casa tudo parece tão perfeito, mas agora que estamos longe, sozinhos…
A câmera de Rossellini permanece paciente ao longo de todo o filme, permitindo que os personagens se desenvolvam, valorizando assim cada gesto e cada pequeno acontecimento. Grande parte do filme foi feito a partir da improvisação. Dessa forma, Rossellini alcança um nível incrível de naturalismo no  filme. É importante salientar que Roberto Rossellini é um dos maiores ícones do neorrealismo italiano, movimento que se caracterizou por focalizar as dificuldades econômicas da Europa do pós-guerra, a pobreza, o conflito de classes, o quotidiano opressor das camadas mais pobres e a injustiça. O tema de Viagem à Itália se distancia, portanto, do neorrealismo italiano. No entanto, o que há de mais real que um casal que se descobre em crise? Sem dúvida, esse filme marca uma evolução na filmografia do diretor, que se afasta do neorrealismo estrito em direção a um cinema “moderno” e mais intimista e, por essa razão, Viagem a Itália é considerado um filme pioneiro. Há um pouco do filme de Rossellini em O Desprezo, de Godard, por exemplo, que também conta a história de um casal em crise. Não é por acaso que no filme do diretor francês aparecem pôsteres deViagem à Itália no cenário. Trata-se de uma homenagem e uma citação explícita. 
Viagem à Itália é protagonizado pelo inglês George Sanders e pela sueca Ingrid Bergman, com quem o diretor era casado na época. Os personagens se revelam, a princípio, bastante antipáticos. Sanders interpreta como ninguém o tipo arrogante, sarcástico e frio, algo que ele fez diversas vezes em sua carreira. Bergman é o coração do filme, uma vez que ela demonstra, com bastante sensibilidade, a instabilidade de sua personagem e a evolução de seus sentimentos. À medida que o filme avança, o espectador passa a se identificar com esses indivíduos extremamente humanos e falhos. 
Rossellini nos legou grandes obras-primas como Roma, Cidade Aberta (1945), Paisá (1946), Alemanha, Ano Zero (1947) e Stromboli (1950). Ainda que Viagem à Itália não seja o filme mais famoso do diretor, ele ocupa um lugar bastante especial na sua filmografia, sendo um dos filmes mais influentes de sua carreira.