sexta-feira, 7 de março de 2014

Clássicos da Cinemateca - Salò ou os 120 dias de sodoma

"Nós, fascistas, somos os únicos verdadeiros anarquistas, naturalmente, uma vez que somos donos do Estado. Na verdade, a verdadeira anarquia é a do poder."
Divulgação"É quando vejo os outros degradados, que eu me regozijo, sabendo que é melhor ser eu do que ser a escória do povo."
Escrever sobre Salò é provavelmente uma tarefa mais fácil do que de fato assistir ao filme do início ao fim. Diante do horror exibido em cena é normal desviar o olhar, maldizer o diretor, querer parar de assirtir no meio, pular algumas partes... Há até mesmo relatos de quem chegou a passar mal ao ver algumas cenas. Não, não se trata do que normalmente chamaríamos de um filme de terror. No entanto, questão de gênero à parte, talvez este seja um dos mais terríveis filmes de terror já realizados. Ainda hoje, quase 40 anos depois do seu lançamento, Salò causa controvérsias, divide opiniões e, por incrível que pareça, continua banido em alguns países. 
O diretor italiano Pier Paolo Pasolini, o gênio por detrás do filme, é certamente um dos maiores artistas europeus do século XX. Grande poeta e cineasta, Pasolini também escreveu romances, ensaios e peças de teatro. Além de ser um artista multifacetado, Pasolini foi um intelectual extremamente engajado, tendo sido associado por muito tempo ao partido comunista. A defesa corajosa de seus valores e de suas opiniões sobre a sociedade italiana, as diferenças de classes, o clero e o consumismo lhe valeram grandes inimizades. Seu brutal assassinato, em novembro de 1975, jamais foi devidamente esclarecido. Pasolini morreu aos 53 anos, poucos meses antes de Salò ser lançado nos cinemas, tendo nos legado diversas obras-primas, como O Evangelho Segundo São Mateus (1964), Mamma Roma (1962),Teorema (1968) e Desajuste Social (1961).
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"Sempre que os homens são iguais, sem que haja diferença, a felicidade não pode existir."
Erudito e profundo conhecedor do universo das Letras, Pasolini realizou interessantes adaptações de clássicos da literatura universal, como Decameron (1971), Édipo Rei (1967), Os Contos de Canterbury (1972), As Mil e Uma Noites (1974) e Medéia (1969). Salò é baseado no romance 120 dias de Sodoma, do Marquês de Sade, escrito em 1785.  A divisão do filme, em quatro partes, no entanto, é inspirada no segmento “Inferno”, da Divina Comédia de Dante. O filme contém, também, citações de obras de importantes pensadores do século XX, como Roland Barthes, Maurice Blanchot, Philippe Sollers e Simone de Beauvoir.
Pasolini tranpôs a narrativa, que se passava originalmente no século XVII na França, para os últimos dias do regime de Mussolini, na República de Salò, local de onde o ditador governava. Foi também nessa cidade que o irmão do cineasta foi assassinado em 1945. O filme conta a história de um grupo de fascistas libertinos que sequestram 18 adolescentes, garotos e garotas, e os mantêm enclausurados durante meses, impondo-lhes diversas formas de abuso (sexual, em sua maioria) e humilhação. Os jovens são vítimas das mais absurdas perversidades, torturas e atos de violência, arquitetados pelas mentes doentias de um grupo de homens ricos, poderosos e sádicos.
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"Em todo o mundo, nenhuma volúpia agrada os sentidos mais do que o privilégio social."
Vários fatores fazem de Salò um verdadeiro soco no estômago. O filme não nos oferece, por exemplo, uma narração off ou um personagem principal, ou seja, ele não adota nenhum ponto de vista. Essa neutralidade e ausência de referências é extremamente desconfortável para o espectador. Além disso, as terríveis cenas de tortura são, na sua maioria, filmadas em longos planos, sem corte, que não oferecem qualquer escapatória para quem assiste. A brutalidade da história contrasta com a direção clássica e precisa de Pasolini. O diretor acentua a grandiosidade do cenário e o seu caráter opressor, através de belíssimos enquadramentos, marcados pela simetria e acompanhados pela bela trilha sonora de Enio Morricone.
Muitos afirmam que o filme é uma crítica ao poder opressor da sociedade de consumo capitalista. Chegam mesmo a afirmar que a famosa cena de coprofagia (alimentar-se de fezes) é uma metáfora da ascensão da cultura do junkie food. No entanto, a obra parece ir além dessas questões, sendo um exame impiedoso da crueldade humana, do abuso de poder, do autoritarismo e de todas as formas de corrupção. Uma coisa é certa: poucos cineastas ousaram ir tão longe ao tratar da violência e do sexo, o que faz de Salò um dos filmes mais audaciosos e provocadores de todos os tempos.
Melhor filme de Pasolini? Pior? Provavelmente existem argumentos para defender as duas hipóteses. Obviamente, o filme não faz unanimidade, mas também tem grandes admiradores e ferrenhos defensores. Não se pode negar, no entanto, que se trata de uma obra fundamental da filmografia do brilhante diretor italiano. Salò revela-se importante não apenas pelas discussões que levanta, mas também por nos fazer refletir sobre os limites (ou a falta deles) da arte na representação da realidade.
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"O gesto obsceno é como a linguagem do surdo-mudo, um código 
que nenhum de nós, apesar do capricho irreprimido, pode transgredir."
 

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Clássicos da Cinemateca - Três Mulheres

“Tenho uma nova colega de quarto. Pinky, a novata do trabalho. Ela é estranha, mas é melhor do que esperar alguma enfermeira gorda responder ao anúncio.”
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“Você é a pessoa mais perfeita que eu conheci.”
“Estranho” talvez seja o primeiro adjetivo que nos venha à mente ao tentarmos definir o filmeTrês Mulheres. Esse hipnótico longa-metragem de Robert Altman está longe de ser um dos filmes mais conhecidos do diretor e, no entanto, trata-se definitivamente de um dos trabalhos mais interessantes que ele realizou em toda sua prolífica carreira.
Altman fez um pouco de tudo: televisão e cinema, ficção e documentário; dirigiu, roteirizou, produziu; realizou filmes de baixíssimo orçamento e grandes produções. Além disso, o cineasta passeou por diversos gêneros, talvez por todos, tendo feito comédia, drama, filme de guerra, musical, western, suspense e filmes como Três Mulheres e o fascinante Imagens (1972), que dificilmente se enquadrariam em uma só categoria.
A extrema versatilidade de Altman nunca impediu que ele imprimisse em cada um de seus trabalhos o seu estilo e a sua marca de autor. Altman ficou conhecido por jamais se vender à Hollywood e por manter até o fim sua integridade artística. Ele trabalhou até o ano da sua morte, 2006, quando lançou seu derradeiro filme: A Última Noite. No entanto, ele é mais conhecido por títulos como M*A*S*H (1970),  Nashville (1974), O Jogador (1992), Short Cuts - Cenas da Vida (1993) e Assassinato em Gosford Park (2001).
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Gêmeas. Aposto que deve ser estranho. Você acha que elas sabem quem são?
A ideia para a realização de Três Mulheres surgiu de uma série de sonhos que o diretor teve. Não é de se estranhar, portanto, que a narrativa seja dominada, do início ao fim, por uma atmosfera onírica. O filme é ambientado em uma região árida da Califórnia e, como indica o título, ele gira em torno de três personagens femininas: Millie (Shelley Duvall), Pinky (Sissy Spacek) e Willie (Janice Rula).
Millie trabalha em um centro de reabilitação para idosos e é encarregada de treinar a novata Pinky. A primeira exerce um imenso fascínio sobre a segunda. Eventualmente, as duas colegas passam a dividir um pequeno apartamento em um condomínio onde também moram Edgar e sua esposa grávida, Willie, uma artista bastante silenciosa e antissocial. O trabalho de Willie consiste em pintar reiteradamente as mesmas figuras, homens e mulheres que se assemelham a deuses e que parecem travar uma luta corporal. A relação entre as três personagens intensifica-se gradualmente, até que suas identidades acabam se permeando.
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Tive o mais incrível dos sonhos…
Assim como ocorre no excelente Imagens, em Três Mulheres Robert Altman sente-se completamente a vontade para experimentar, o que faz desse filme um belíssimo exercício cinematográfico. Altman contou com o apoio e a confiança do produtor Alan Ladd Jr., que comprou a ideia do filme, sem que existisse sequer um scriptTrês Mulheres começou a ser filmado sem que o roteiro fosse finalizado. As filmagens deram-se de forma linear (o que é bastante raro) e, à medida em que elas avançavam, Altman escrevia as cenas seguintes. Realizado com um modesto orçamento, o filme foi, como era de se esperar, um imenso fracasso comercial.
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Desde que você se mudou, só me causa desgosto. Ninguém quer a sua companhia.
A intenção do diretor era a de realizar um filme que fosse fiel à dinâmica do sonho. Como sabemos, o sonho obedece a um tipo de lógica particular. E é absolutamente admirável como o cineasta consegue captar a indeterminação que é tão característica desse fenômeno do inconsciente. O espectador, assim como os personagens, sente-se mergulhado numa atmosfera estranha, incerta e angustiante. Somos hipnotizados pelas imagens inquietantes que povoam o filme, pela sucessão de símbolos, pelo ritmo cadenciado da narrativa, pelos personagens dúbios, pela trilha sonora sombria. O filme não tem a intenção de ser racional e muito menos didático. Ele é um enigma até mesmo para o diretor, que chegou a afirmar não ter as respostas para os seus mistérios.
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Prefereria enfrentar um milhão de selvagens do que uma mulher que aprendeu a atirar.
Altman era conhecido por ser um excelente diretor de atores e por lhes conceder uma grande liberdade criativa na hora das filmagens. Em Três Mulheres, a improvisação é levada ao extremo, já que muitos dos diálogos nem mesmo chegaram a ser escritos. Um dos maiores acertos do cineasta é a escalação de seu elenco. Altman escolheu para protagonizar o filme duas das atrizes mais interessantes e estranhas (no bom sentido) do cinema hollywoodiano: Shelley Duvall e Sissy Spacek. Donas de uma beleza nada convencional, ambas despontaram nos anos 70.
A talentosíssima Spacek havia chamado a atenção, no ano anterior, ao encarnar Carrie, a Estranha (1976). Duvall, por sua vez, teve um papel de destaque em Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (também de 1977) e, em três anos, faria o seu papel mais famoso, na obra-prima O Iluminado (1980), ao lado de Jack Nicholson. Duvall, ganhadora do prêmio de Melhor Atriz em Cannes por seu trabalho em Três Mulheres, nos oferece provavelmente a melhor performance da sua carreira.
Além de compor uma personagem fascinante, Duvall tem uma figura tão interessante em cena, com seus grandes olhos assustados, que é difícil não se lamentar que ela não faça mais filmes atualmente. Willie, sua personagem, é pateticamente solitária, iludida, impopular, completamente ignorada por todos a sua volta. A única pessoa que se interessa por ela é Pinky, uma jovem moça recém-chegada do Texas. Spacek brilha ao criar essa personagem particularmente bizarra e infantil e ao mostrar sua transformação ao longo da narrativa. Janice Rula, que interpreta a terceira mulher, também cria uma personagem bastante interessante e ambígua, ainda que tenha um espaço menor na trama. À medida em que o filme avança, as identidades das três personagens se cruzam, se fundem e se confundem.
Ao contrário do que se possa pensar, Três Mulheres não é um filme menor de Robert Altman e, sim, uma prova cabal da genialidade, do preciosismo e do talento do diretor. Talvez não seja um filme para todos os gostos e dificilmente seja uma unanimidade, mas muitas obras-primas não o são. 
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Sonhos não podem te machucar.
 

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Clássicos da Cinemateca - Branca Neve e os Sete Anões

Magic mirror on the wall,
who is the fairest one of all?
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With a smile and a song/ Life is just a bright sunny day/ 
Your cares fade away/ And your heart is young 
Romance, ação, terror, drama, comédia, musical. Todos esses gêneros podem ser encontrados em Branca de Neve e os Sete Anões (1937). Muito provavelmente, esse clássico será para sempre lembrado como a maior realização da Disney e um dos melhores filmes que o cinema hollywoodiano já produziu. A “loucura de Walt Disney”, como o empreendimento ficou conhecido desde que o criador do Mickey o anunciou em 1934, consistiu em fazer um longa-metragem de animação, de 83 minutos, numa época em que os desenhos animados eram tidos como um entretenimento rápido. Ainda que outros longas-metragens de animação tenham sido lançados nos Estados Unidos antes de Branca de Neve (filmes, hoje, considerados perdidos ou raros), foi o clássico de 1937 que inaugurou toda uma linhagem de filmes de animação. Assim, as grandes animações que se seguiram (de O Rei Leão aos filmes da Pixar, passando por A Bela e a Fera e tantos outros) são devedoras da revolução cinematográfica que foi Branca de Neve e os Sete Anões
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- But to make doubly sure you do not fail, bring back her heart in this!
Para realização desse clássico, Disney contou com uma equipe gigantesca, que era composta por mais de 300 profissionais. Essa equipe teve que aprimorar e desenvolver diversas técnicas para que o projeto ambicioso saísse do papel. Uma das maiores inovações foi o uso da câmera multiplano (multiplane camera), que permitia a ilusão de tridimensionalidade ao criar três níveis de ilustração e animá-las diferentemente. Além disso, os animadores tiveram que utilizar uma película maior do que a que então utilizavam para os cartoons, a fim de explorar ao máximo os detalhes da animação. O resultado não poderia ser melhor. Branca de Neve e os Setes Anões é um espetáculo de movimento. Cada um dos inúmeros elementos vistos na tela é dotado de vida. 
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Heigh-ho, Heigh-hoIt's home from work we go
O apuro técnico sozinho não faz um grande filme. E talvez Branca de Neve e os Sete Anõesnão fosse lembrado da mesma forma se não tocasse tanto o coração das pessoas. Para o seu primeiro longa-metragem de animação, Walt Disney escolheu adaptar um conto de fadas bastante conhecido dos irmãos Grimm. Obviamente, não se trata de uma adaptação completamente fiel. O time de Disney se apropriou da essência do texto dos escritores alemães e fez uma versão que se tornou ainda mais popular e conhecida do que o original. Um dos métodos usados por Disney para estimular a criatividade de sua equipe era o de premiar as melhores ideias e gags sugeridas. O processo de criação posto em prática por Walt Disney baseava-se na colaboração, na troca incessante de ideias, um trabalho verdadeiramente feito em conjunto. 
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Ho hum the tune is dumb/ The words don't mean a thing/ 
Isn't this a silly song/ For anyone to sing?
Um dos grandes acertos de Walt Disney foi apostar nas figuras dos sete anões (que nem são nomeados no original). Cada um dos anões é dotado de uma personalidade bem definida, que é explicitada em seus nomes e nos movimentos dos personagens (que são exagerados através da animação para que possam expressar suas emoções). Ao lado de Branca de Neve, os apaixonantes anões são as grandes estrelas do filme.
E por falar na heroína, há mesmo quem defenda que ela é uma das personagens menos interessantes (sem falar do príncipe, cuja presença é ainda menos notável do que no texto original). Passiva e ingênua, Branca de Neve encarna a perfeita dona de casa que deve lavar, passar e cozinhar, enquanto seus homens, os anões, trabalham (recentemente Meryl Streep levantou a questão da misoginia de Walt Disney e talvez seja interessante confrontá-la com a maneira como as princesas são representadas em suas animações, mas isso é uma discussão a parte).
Muito mais interessante e, até mesmo bonita, é a maquiavélica Rainha, que encarna a competitividade sem limites, a valorização excessiva da beleza estética e a vaidade extrema, valores bastante em voga ainda hoje. Altiva e conhecedora das artes da feitiçaria, a Rainha conta com a ajuda de um sinistro espelho.
Não podemos deixar de citar também os animais que povoam o filme. Como de costume em qualquer produção Disney, eles possuem um papel de destaque.
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- All alone, my pet?
Branca de Neve e os Sete Anões é recheado de momentos antológicos que povoam o imaginário de inúmeros cinéfilos. A brilhante (e assustadora) cena em que a heróina se perde na floresta é provavelmente uma das mais lembradas e elogiadas. Mas o filme conta também com momentos de pleno regozijo, como aquele em os anões se deparam com a Branca de Neve dormindo em seu quarto e, quando ela acorda, um por um seus narizes aparecem por detrás da cama. E o que dizer da cena da arrumação, na qual animais (lembra do esquilo que usa o rabo como espanador?) e Branca de Neve fazem a faxina mais divertida da história do cinema?
O filme também conta com muitas canções inesquecíveis, compostas por Frank Churchill e Larry Morey, como "Heigh-Ho", "Some Day My Prince Will Come" e "Whistle While You Work". As dublagens são extremamente eficazes, com destaque para a bela voz de Adriana Caselotti (Branca de Neve) e para a performance inspirada de Lucille La Verne (a Rainha, reparem a mudança de sua voz depois que a personagem se transforma em bruxa). 
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Someday my prince will come/ Someday I’ll find my love/ 
And how thrilling that moment will be/ When the prince of my dreams comes to me
Talvez o espectador dos dias hoje, acostumado com as mais diversas “pirotecnias” cinematográficas, não consiga mensurar a revolução que representou a realização desse clássico, nem mesmo imaginar a reação do público da época (surpresa, choque, encantamento?). E talvez o público daquele tempo não tivesse consciência de estar diante de um dos maiores marcos do cinema. Fato é que “a loucura de Disney” foi um estrondoso sucesso de bilheteria e obviamente de crítica. Feitos os devidos ajustes de inflação, Branca de Neve e os Sete Anões continua sendo um dos filmes de maior bilheteria dos Estados Unidos. Encontrado facilmente na maioria das listas dos melhores filmes da história do cinema, a animação fez diversas gerações rirem, chorarem, cantarem e ainda hoje é capaz de fazer, de qualquer marmanjo, uma eterna criança. 

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Clássicos da Cinemateca - 12 Homens e uma Sentença

“É sempre difícil deixar o preconceito fora de uma questão dessas. Não importa pra que lado vá, o preconceito sempre obscurece a verdade.”

– Você está falando de uma questão de segundos! Ninguém pode ser tão preciso!
– Bem… Acredito que um depoimento que pode colocar um garoto numa cadeira elétrica deva ser preciso!
Sidney Lumet faz parte do panteão hollywoodiano. O cineasta foi um dos deuses do cinema americano, um dos melhores diretores de atores que Hollywood conheceu e um excelente contador de histórias. O incansável e prolífico cineasta nos legou uma filmografia extensa (mais de 50 filmes, além de diversos trabalhos para a televisão), em que abundam obras-primas como 12 Homens e uma Sentença (1957), Um Dia de Cão (1975), Rede de Intrigas(1976), Serpico (1973), O Príncipe da Cidade (1981) e O Veredito (1982)Lumet trabalhou até os 82 anos e seu último filme foi o ótimo Antes que o Diabo Saiba que Você Está Morto (2007).
Lumet foi um dos grandes retratistas de Nova York e é tido como um dos últimos moralistas de Hollywood, tendo tratado de questões fundamentais como justiça e ética. O realismo social e a complexidade psicológica dos personagens são algumas das características mais marcantes do cinema do diretor.
Os filmes de Lumet são geralmente palco de grandes atuações e o cineasta trabalhou, ao longo de sua carreira, com muitas das maiores estrelas hollywoodianas, como: Katharine Hepburn, Ingrid Bergman, Henry Fonda, Sean Connery, Marlon Brando, Paul Newman, Al Pacino, Peter Finch, Richard Burton, Faye Dunaway, só para citar alguns nomes. 

– De acordo com o depoimento, o rapaz parece culpado... Talvez ele seja. Eu me sentei lá na corte por seis dias ouvindo enquanto as evidências era apresentadas. Todos pareciam ter tanta certeza, você sabe, eu... Eu comecei a ter um sentimento peculiar sobre esse julgamento. Quero dizer, nada é tão certo.
Doze Homens e uma Sentença é a adaptação de uma peça feita para a televisão (teleplay). A peça, escrita por Reginald Rose e dirigida por Franklin Schaffner, foi ao ar em 1954. O filme é a estreia de Lumet no cinema. O diretor já havia chamado a atenção pelo seu trabalho na televisão americana, como nas séries The Alcoa Hour (1956) e Studio One (1957). O ator Henry Fonda, além de protagonizar Doze Homens e uma Sentença, também atuou como produtor e foi o responsável por trazer Lumet para o projeto.
O filme conta a história de um júri de 12 homens que deve deliberar sobre a inocência ou culpa de um jovem, acusado de assassinar o pai. O que parecia ser uma decisão simples se complica quando o Jurado 8 (Henri Fonda) questiona a falta de provas para incriminar o rapaz. Um longo e acalorado debate se instaura entre os jurados, até que eles cheguem a um consenso.

– Estamos tentando colocar um homem culpado na cadeira elétrica onde é o lugar dele, aí um homem começa a contar contos de fadas e estamos escutando!
Doze Homens e Uma Sentença focaliza a confrontação dos jurados e os conflitos que surgem a partir das diferentes opiniões, personalidades, origens. Eles são identificados não pelos nomes, mas por números e pelas profissões, o que contribui para a criação de tipos sociais bem definidos. Aos poucos, o espectator se familiariza com o perfil de cada um deles.
Os personagens encontram-se enclausurados na sala do júri e o filme se passa quase integralmenre entre quatro paredes. Para dar a progressiva sensação de claustrofobia, Lumet posiciona inicialmente as câmeras acima do nível dos olhos e utiliza lentes que dão a impressão de maior distância entre os personagens. À medida em que o filme progride, o diretor abaixa o posicionamento da câmera, troca as lentes para que o cenário pareça mais perto dos atores e passa a utilizar os closes com maior frequência.
Uma das grandes forças do filme é a performance do elenco. Lumet submeteu os atores a longos ensaios e chegou a deixá-los fechados durante horas na sala, repetindo as falas sem filmá-los, para que eles sentissem na pele o desconforto e a angústia dos personagens. O resultado é mais do que satisfatório. Destacam-se o grande Henry Fonda e seu antagonista Lee J. Cobb, em uma atuação inspirada. Os diálogos afiados e inteligentes permitem uma reflexão ainda atual sobre o papel e a eficácia do sistema judiciário.
Considerado um dos melhores filmes de tribunal já realizados, 12 homens e Uma Sentença é constantemente utilizado em cursos e seminários para ilustrar dinâmicas de grupo e resolução de conflitos. Em seu filme de estreia, Lumet já demonstra sua imensa habilidade de explorar os dramas humanos, as relações interpessoais, a dificuldade de comunicação do ser humano, a incompreensão e o egoísmo.
Clássico incontornável, obra-prima celebrada por críticos e cinéfilos, 12 Homens e Uma Sentença foi indicado a três Oscars (Melhor Filme, Melhor Diretor e Melhor Roteiro), além de ter levado o Leão de Ouro no Festival de Berlim, em 1957.

– Eu não sei realmente o que é a verdade. E suponho que ninguém jamais saberá.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Clássicos da Cinemateca - Morte em Veneza

"Sabe… por vezes, penso que os artistas são como caçadores que atiram no escuro. Desconhecem o alvo e não sabem se o atingiram. Mas não podemos esperar que a vida nos mostre o que a arte é. A criação de beleza e pureza é um ato espiritual.”

“Não deves sorrir assim! Não se deve sorrir assim pra ninguém!”
Grande ícone do cinema italiano, Luchino Visconti nos legou obras-primas como O Leopardo(1963), Rocco e Seus Irmãos (1960), Obsessão (1942) e A Terra Treme (1947). O cineasta esteve ligado, ao lado de diretores como Vittorio De Sica e Roberto Rossellini, à criação do movimento neorealista italiano. Ainda que descendente da alta aristocracia milanesa, Visconti sempre se mostrou questionador e “rebelde”, tendo sido um grande apoiador do Partido Comunista Italiano, principalmente durante a Segunda Guerra Mundial. O cineasta também nunca escondeu sua homossexualidade e manteve uma longa relação com o ator austríaco Helmut Berger, que dirigiu em filmes como Os Deuses Malditos (1969) e Ludwig, a Paixão de um Rei (1973). Visconti trabalhou também com algumas das maiores estrelas do cinema de seu tempo, como Anna Magnani, Silvana Mangano, Claudia Cardinale, Marcello Mastroianni, Alain Delon, Dirk Bogarde e Burt Lancaster.
Visconti é também reconhecido por ter realizado belíssimas adaptações de clássicos da literatura mundial, como O Estrangeiro (1967), de Camus, Noites Brancas (1957), de Dostoiévski, e Morte em Veneza (1971), de Thomas Mann. O último é um dos filmes mais famosos do diretor. Baseado no romance homônimo, obra-prima publicada em 1912, o filme explora o tema da velhice e a incontornável ameaça da morte, associadas à busca incessante de uma forma de beleza ideal e inacessível. O filme se passa na bela Veneza, que aos poucos vai se deteriorando devido a uma série de medidas sanitárias postas em práticas pelo serviço de saúde local, em razão de uma epidemia de cólera.

“Sabedoria? Dignidade humana? Para que servem? O gênio é uma dádiva divina.”
Morte em Veneza é ambientado na Veneza do século 20, onde reina uma burguesia que ama o luxo e a boa vida. No magnífico Grande Hotel da cidade, o velho compositor Aschenbach encontra Tadzio, adolescente andrógino, de origem polonesa, que passa as férias com a famíla. O compositor vê no garoto a mais perfeita representação da Beleza, um tipo de beleza ideal que o artista sempre buscou alcançar em suas obras. Um sentimento desconcertante, uma imensa fascinação toma conta do protagonista. A relação dos dois personagens se resume basicamente a olhares trocados. Ainda que uma epidemia de cólera ameace a cidade, Aschenbach se recusa a partir. 

“A realidade apenas nos distrai e degrada.”
Apesar de ser um dos filmes mais conhecidos e admirados do cineasta italiano, Morte em Veneza está longe de ser uma unanimidade. A maior parte das críticas negativas têm por alvo a liberdade tomada pelo o cineasta ao adaptar o romance de Mann. Importantes modificações foram realizadas a partir da história original. A mais famosa delas diz respeito à transformação do protagonista (que no romance era um escritor) em um compositor. Ao que tudo indica, essa mudança se deve ao fato de Visconti considerar que o Aschenbach de Mann teria sido inspirado no compositor Gustav Mahler. Não é por acaso que a 5ª Sinfonia de Mahler está constantemente presente na trilha sonora do filme. Visconti também introduziu diversos flashbacks na narrativa e buscou inspirações em outras obras literárias, como Em Busca do Tempo Perdido, de Proust e, principalmente, Doutor Fausto, outra obra de Mann.
No entanto, os críticos mais severos atacam, sobretudo, a maneira com a qual o diretor imprimiu no filme sua visão da obra. Para críticos como Roger Ebert, o cineasta peca ao conferir um teor sexual à relação do protagonista e o jovem garoto. Para o crítico americano, Visconti ignora as sutilezas do texto de Mann ao apresentar a relação dos dois personagens como um amor homossexual. Ebert insiste que o garoto representa um ideal de beleza e não um objeto de desejo. 

“Não há impureza tão impura quanto a velhice.”
A releitura que faz Visconti da obra-prima de Thomas Mann pode ter seus detratores, mas também conta com inúmeros fãs. A trágica história de amor (impossível) contada pelo cineasta italiano conserva alguns dos principais elementos do romance, como a discussão filosófica sobre a eterna busca pela beleza ideal e a reflexão sobre o fazer artístico. Visconti também focaliza a confusão de sentimentos, a paixão e a decadência tão presentes no romance. O filme trata de uma maneira tocante e humana o que é envelhecer e o que é buscar a vida, a paixão e a juventude, enquanto se espera pela morte. 

“Sabe o que existe na base daquilo que agrada a todos? A mediocridade.”
Ainda que controverso, Morte em Veneza continua sendo um dos mais belos filmes de Visconti. O longa-metragem é esteticamente primoroso, o que é inegável mesmo entre aqueles que não o consideram uma obra-prima. Poucas vezes, Veneza foi retratada de maneira tão exuberante (graças também à bela fotografia de Pasqualino De Santis). Visconti confere uma atmosfera melancólica, decadentista e, ao mesmo tempo, sublime à bela cidade italiana. O jovem Ladzio surge como o próprio símbolo da beleza e Visconti filma o jovem ator sueco Björn Andrésen como se ele fosse uma verdadeira obra de arte. Para completar, o excelente ator inglês Dirk Bogarde nos oferece uma performance emocionante, minimalista, placidamente trágica, naquele que é provavelmente seu papel mais famoso no cinema.
Efusivamente poético, Morte em Veneza conta a história do último amor de um artista, um amor epifânico, perturbador, que tem por objeto um jovem garoto, a própria encarnação da beleza. O sentimento amoroso é condenado pela impiedosa ação do tempo que nada poupa. Visconti retrata com sensibilidade a paixão de um homem que morre progressivamente. Trata-se, provavelmente, de um dos filmes mais pessoais e  intrigantes do mestre italiano. 

“Não Gustav, não. A beleza pertence ao mundo dos sentidos. Apenas aos sentidos.”

sábado, 19 de outubro de 2013

Clássicos da Cinemateca - O Cozinheiro, o Ladrão, Sua Mulher e o Amante

Try the cock, Albert. It's a delicacy, and you know where it's been.
His mother is a Roman Catholic, he's been imprisoned in South Africa, he's as black as the ace of spades and he probably drinks his own pee!
Peter Greenaway é artista plástico, escritor, cineasta e grande estudioso das artes em suas mais diversas formas. O versátil artista britânico é reconhecido por imprimir em suas obras cinematográficas referências à pintura flamenca e às obras renascentistas e barrocas. Seus filmes são marcados por certo preciosismo na composição cênica. Talvez por ser um exímio pintor, Greenaway demonstre, em suas obras para o cinema, grande habilidade no uso de cores, contrastes e iluminação. Considerado um cineasta elitista por alguns, gênio por outros, Greenaway consolidou, ao longo de mais de 50 anos de carreira, uma filmografia bastante interessante e rica, composta por filmes de ficção (curtas e longas-metragens) e documentários.
Os filmes de Peter Greenaway geralmente passam longe do circuito comercial e costumam ser classificados como “filmes de arte”. O diretor sempre flertou com o experimentalismo e muitas de suas obras de ficção não apresentam uma estrutura narrativa convencional. Controverso e assumidamente pretensioso, o cinema de Greenaway explora os limites da linguagem cinematográfica e instaura um diálogo fascinante entre o cinema, outras manifestações artísticas e diversas áreas do conhecimento humano.
O inquieto diretor é tido como um dos mais brilhantes expoentes do cinema britânico, ainda que não compartilhe da popularidade de cineastas contemporâneos, como David Lynch e Martin Scorsese. Dentre suas maiores realizações, encontram-se: O Cozinheiro, o Ladrão, Sua Mulher e o Amante (1989), Afogando em Números (1988), O Livro de Cabeceira (1996), O Contrato do Amor (1982). O último longa-metragem de ficção do diretor foi Goltzius and the Pelican Company (2012), ainda inédito no Brasil. Nos últimos anos, Greenaway tem se dedicado bastante à realização de instalações multimídias e exposições de arte. 
Looks like catfood for constipated French rabbits!
O Cozinheiro, o Ladrão, Sua Mulher e o Amante é uma das grandes obras-primas de Greenaway e o filme de maior sucesso do diretor. Trata-se de uma sátira brilhante e excêntrica, carregada de humor negro, sobre o exagero, o mau-gosto e a maldade humana. Filmado de maneira exuberante, excessivamente gráfica e luxuriosa, O Cozinheiro… se passa quase inteiramente em um sofisticado restaurante francês, chamado Le Hollandais.
Richard (Richard Bohringer), o chefe, é um gênio da cozinha, um verdadeiro artista gastronômico. Já o proprietário do restaurante, Albert Spica (Michael Gambon), é um um grande homem do crime (à la Poderoso Chefão), que frequenta todas as noites o Le Hollandais, na companhia de sua bela mulher Georgina (Helen Mirren) e uma corja de bajuladores. Enquanto faz seus discursos ácidos e impagáveis, Albert se descuida da esposa que acaba por se interessar por um dos clientes do lugar, o intelectual Michael (Alan Howard). Logo, eles iniciam um tórrido caso de amor. 
Circumcised mediocrity is screwing my wife!
Em O Cozinheiro…, Greenaway focaliza algumas das pulsões primárias do ser humano: o desejo sexual, a gula e a violência. O exagero e o grotesco fazem parte da suculenta sátira social realizada pelo cineasta e tais características são personalizadas em Albert, um personagem hiperbólico, monstruoso e desprezível. Na pele desse personagem cruel e falastrão, temos o ótimo ator irlandês Michael Gambon (o professor Dumbledore dos últimos filmes da franquia Harry Potter) em uma performance inesquecível. Certamente, Albert é uma das maiores encarnações do mal já vistas no cinema.
Mas não é apenas Gambon que se destaca no filme. Helen Mirren, atriz shakesperiana, famosa por interpretar personagens da nobreza britânica e ganhadora do Oscar em A Rainha (2006), surge belíssima em O Cozinheiro… e esbanja sensualidade ao encarnar a esposa infiel de Albert. A atriz inglesa brilha, sobretudo, por mostrar a transformação de sua personagem, cujo final é apoteótico. Mirren, por sinal, protagoniza tórridas cenas de sexo com o excelente Alan Howard. 
I think those Ethiopians enjoy starving. Keeps them thin and graceful.
Desson Howe, crítico do Washignton Post, disse, certa vez, sobre o filme: Greenaway “trata do assunto mais feio imaginável da maneira mais bela possível”. De fato, o filme poderia ser descrito como um verdadeiro “banquete visual”. Nesse banquete, Greenaway contou com a belíssima fotografia de Sacha Vierny, o primoroso trabalho de Ben Van Os e Jan Roelfs na direção de arte e figurinos assinados por ninguém menos que Jean-Paul Gautier. Greenaway abusa das cores fortes e das texturas. Cada cenário tem sua cor característica: o vermelho do salão, o branco do banheiro, o verde da cozinha. A variedade de cores é também visível nos figurinos dos personagens, que mudam magicamente quando eles trocam de cenários. Tudo é extremamente estilizado, barroco, rebuscado.
A maioria dos filmes de Greenaway caracteriza-se por certo distanciamento emocional. O Cozinheiro…, no entanto, é uma obra visceral. Roger Ebert, em sua análise do filme, atribuiu essa transformação ao sentimento de raiva do diretor, fruto de um descontentamento político. Alguns críticos e estudiosos viram no longa-metragem uma forte dimensão alegórica. O filme seria, assim, um protesto semivelado, uma parábola sobre a situação político-social do Reino Unido de Margaret Thatcher. Uma das interpretações propostas para o filme vê cada um dos quatro personagens principais como representações de entidades e segmentos distintos da sociedade britânica: o cozinheiro simbolizaria os funcionários publicos e os cidadãos obedientes; o ladrão, a arrogância, o autoritarismo e o poder de Margaret Thatcher; o amante, a oposição composta por intelectuais e esquerdistas; e a esposa, a própria pátria.
A obra-prima de Greenaway, no entanto, não se reduz a um único contexto político e nos oferece uma reflexão atemporal sobre as relações de poder, sobre a exploração do homem sobre o homem e sobre o lugar que a violência e a cultura ocupam em nossa sociedade. O Cozinheiro, o Ladrão, sua Mulher e o Amante é um filme provocador, inteligente e tragicamente divertido. 
Could you cook him?

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Clássicos da Cinemateca - Uma mulher sob influência

“Todos nós nascemos loucos. Alguns permanecem.” Samuel Beckett
“Tornei-me insano, com longos intervalos de uma horrível sanidade.”  Edgar Allan Poe
John Cassavetes teve uma prolífica carreira como ator, tendo trabalhado em grandes filmes como Os Doze Condenados (1967) e O Bebê de Rosemary (1968). O galã de origem grega, no entanto, deixou sua maior marca no cinema como diretor e roteirista. Dizem, inclusive, que seus trabalhos como ator em filmes de outros diretores eram uma forma de financiar seus próprios projetos. Em ocasião de uma retrospectiva sobre o cineasta realizada em Nova York, neste ano, a New York Magazine afirmou que Cassavetes “pode ter sido o diretor americano mais influente dos últimos 50 anos”. Ainda que sua filmografia seja pouco conhecida do grande público, Cassavetes é considerado um ícone do cinema independente, um cineasta pioneiro e reverenciado pelos seus pares. Cassavetes chegou a realizar o raro feito de ter sido indicado a Oscars de atuação, direção e roteiro por trabalhos diferentes. O multitalentoso diretor/ator morreu ainda jovem, aos 59 anos, em 1989. No entanto, sua obra permanece viva e é objeto de estudo de muitos especialistas.
O cinema de Cassavetes é dominado por personagens complexos, cujos desejos e pulsões são difíceis de se compreender. O diretor sempre procurou trabalhar com atores que se entregassem inteiramente a seus papéis, sem se preocuparem com a própria imagem ou temerem o ridículo. Sua carreira é marcada por parcerias frutíferas com atores que demonstravam tais qualidades. Ele trabalhou, por exemplo, dez vezes com a esposa, Gena Rowlands, seis vezes com Peter Falk e cinco vezes com Ben Gazzara. Cassavetes  afirmou, certa vez, que o mais difícil para um cineasta era encontrar pessoas que quisessem realmente criar algo conjuntamente. Fazendo filmes de baixíssimo orçamento (às vezes financiados por ele mesmo), Cassavetes costumava escalar amigos para trabalharem em seus projetos, em troca de pouco dinheiro ou parte dos ganhos dos filmes nas bilheterias. Muitas vezes, as filmagens de seus longas-metragens eram interrompidas por falta de dinheiro e reiniciadas quando havia recursos disponíveis novamente.
"Todos os homens são doidos e, apesar das precauções, só diferem entre si em virtude das proporções." Nicolas Boileau
Cassavetes deixou, como cineasta, a marca de um estilo singular, que se diferenciava bastante do que era realizado em Hollywood. O diretor gostava de filmar com a câmera na mão, com o auxílio de luz natural, imprimindo um tom de documentário a suas obras e buscando a espontaneidade de seus atores. Por essa razão, o diretor é geralmente apontado como um dos grandes expoentes, nos Estados Unidos, do cinéma verité, movimento cinematográfico cuja criação é atribuída ao francês Jean Rouch. A improvisação e o desejo de observação da realidade marcam esse estilo. O improviso, de fato, fazia parte do método de criação de Cassavetes. No entanto, ao contrário do que muitos acreditam, seus filmes eram roteirizados (com a exceção de Sombras, de 1959). Esse mal entendido deve-se, sobretudo, à liberdade que Cassavetes conferia aos atores, que podiam imprimir suas próprias ideias e interpretações em suas performances. Ainda que houvesse script e diálogos pré-determinados para guiarem os atores, a intuição e o instinto dos mesmos prevaleciam na hora das filmagens.
Cassavetes é um dos maiores exemplos de um cineasta que nunca comprometeu seus valores artísticos e estéticos para que seus filmes fossem produzidos. Ele nunca cedeu ao cinema comercial, nunca permitiu que estúdios, executivos e investidores ditassem suas escolhas artísticas e interferissem no seu trabalho. Ele chegou a hipotecar sua casa para produzir Uma Mulher Sob Influência (1974), não precisando assim se submeter às vontades de um investidor qualquer. Por essas razões, Cassavetes é um dos maiores nomes do cinema independente americano. Dentre as maiores realizações do cineasta encontram-se A Morte de um Apostador Chinês (1976), Noite de Estreia (1977), Faces (1968), Glória (1980) e Amantes (1984). Uma Mulher Sob Influência é tido como uma das suas maiores obras-primas. 
“Eu não sou louco. É o mundo que não entende minha lucidez...” Raul Seixas
A gênese de Uma Mulher Sob Influência é bastante curiosa. Gena Rowlands havia dito ao marido que queria atuar em uma peça que tratasse das dificuldades que enfrenta a mulher moderna. A partir desse desejo da esposa, Cassavetes escreveu o material para a peça. A atriz, no entanto, disse que seria impossível atuar várias vezes por semana em um projeto tão intenso e desgastante. O diretor resolveu, então, adaptar a história para o cinema. Iniciou-se, assim, uma verdadeira epopeia para arrecadar dinheiro para a realização do filme. Segundo o cineasta, ninguém queria ver uma mulher louca de meia idade no cinema.
Sem investimentos dos estúdios, Cassavetes hipotecou sua casa e fez empréstimos com amigos, dentre eles, Peter Falk (famoso por interpretar Columbo na televisão). Falk havia amado o roteiro e queria não só investir, mas também atuar no longa-metragem. A equipe do filme consistia, em sua maioria, de estudantes do American Film Institute. Além de atuar, Rowlands era responsável pela própria maquiagem e penteado. Após a finalização do filme, o novo desafio foi encontrar uma forma de distribuí-lo.
Sem conseguir um distribuidor, Cassavetes viu-se obrigado a contatar pessoalmente proprietários de cinemas e pedir para que exibissem seu filme. Segundo Jeff Lipsky, na época um universitário que foi chamado para ajudar no lançamento do longa-metragem, “foi a primeira vez na história do cinema que um filme independente foi distribuído sem o uso de um sistema nacional de sub-distribuidores”. Cassavetes levou também o longa-metragem a algumas universidades, onde organizou discussões com os alunos. O filme chegou também a participar de alguns festivais, como o de San Sebastián.
Nomes famosos da indústria cinematográfica se manifestaram a favor do filme. Martin Scorsese, que era um grande fã de Cassavetes, disse que retiraria o seu Alice não mora mais aqui (1974) de um grande festival de Nova York, se Uma Mulher Sob Influência não fosse incluído no mesmo. O ator Richard Dreyfuss também fez campanha pelo filme na televisão americana, qualificando-o como incrível, perturbador, brilhante e triste. Ele chegou a declarar que ficou “louco” com o filme e que vomitou depois de assisti-lo. Aos poucos, o filme foi ganhando destaque e chegou a ser indicado ao Oscar de Melhor Atriz e Direção.
“Dizem que sou louco por pensar assim / Se eu sou muito louco por eu ser feliz / Mas louco é quem me diz / E não é feliz, não é feliz” Arnaldo Baptista / Rita Lee
Uma Mulher Sob Influência focaliza o cotidiano dramático de uma família norte-americana. Mabel Longhetti (Gena Rowlands) é dona de casa, esposa e mãe. Seu marido Nick (Peter Falk) é o líder de um grupo de operários, um sujeito expansivo, rude e agregador. Mabel se esforça para agradar o marido, para ser uma boa mãe, para lidar com as pessoas ao seu redor. No entanto, ela não é uma pessoa como as outras. Em meio aos estranhos maneirismos de Mabel, ao seu comportamento errático, à sua maneira nada convencional de se expressar, é possível visualizar uma mulher desesperada, às voltas com as obrigações de uma vida doméstica talvez indesejada. Louca? Eis a questão. Qual o limite de sanidade? Onde começa a loucura? O filme focaliza o antes e o depois da internação de Mabel numa clínica psiquiátrica. A incompreensão, a violência e também um extremo amor fazem parte da vida dessa família tão disfuncional.
Mabel é o coração do filme. Insegura, nervosa, sensível, a personagem parece viver à beira do abismo da própria sanidade. Em meio a tantos papéis que deve ocupar, o de mãe, o de dona de casa, o de esposa, o de anfitriã, ela parece perder sua própria identidade. Nick insiste para que ela apenas seja ela mesma. Mas será que ela sabe como? Nick, por sinal, também tem seus problemas. Ele não sabe lidar com a esposa, adotando atitudes extremas, às vezes agressivas, às vezes plenas de afeto e esperança. Por vezes, ele também parece lutar contra insanidade. Cassavetes retrata diversas camadas de emoção e uma variedade enorme de sentimentos. O filme parece transbordar a ficção e os personagens, tão complexos, tão crus, parecem se libertar do seu estatuto de personagens.
“Sou louco porque vivo em um mundo que não merece minha lucidez.” Bob Marley
Na pele de Mabel, temos uma Gena Rowlands soberba. Nenhum elogio é excessivo para descrever o que ela faz em cena. Nunca no cinema, a loucura foi retratada de uma forma tão pungente, tão visceral. A composição da atriz é rica em detalhes e nuances. O sofrimento, a incapacidade da personagem de se relacionar e se expressar, sua inadequação se tornam tangíveis graças ao desempenho impressionante da atriz. Ao lado dela, Peter Falk nos oferece uma das melhores interpretações da sua carreira e é o contraponto perfeito para Rowlands. Com muita sensibilidade, o ator comunica a impotência de seu personagem e suas limitações. Nick é um ser humano falho, mas completamente apaixonado pela esposa.
Uma Mulher Sob Influência é um dos filmes mais interessantes a estudar a estrutura familiar e a loucura. Brilhantemente dirigido e atuado, esta obra-prima de John Cassavetes trata de uma maneira comovente e sensível a complexidade do ser humano e das relações de amor. 
"A loucura é vizinha da mais cruel sensatez. Engulo a loucura porque ela me alucina calmamente." Clarice Lispector

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Clássicos da Cinemateca - Ondas do Destino

Todo mundo tem alguma coisa em que é bom. Eu sempre fui burra, mas eu sou boa nisso.

Achamos que ele ficará paralisado. Mas ele viverá!
“Um filme deve ser uma pedra no sapato!”, é o que afirmou, certa vez, o polêmico cineasta dinamarquês Lars von Trier. Essa frase de efeito ilustra perfeitamente a filmografia desseenfant terrible do cinema contemporâneo. Trier, filme após filme, desafia o espectador, brinca com suas emoções, crenças, o faz sofrer. Sem medo, ele explora tudo o que há de vil, torpe e obscuro no ser humano. A nobreza, a pureza e a inocência também estão presentes em suas obras nas figuras de heroínas de coração puro como Bess (Ondas do Destino), Grace (Dogville) e Selma (Dançando no Escuro). Figuras sacrificiais. Os filmes de Lars von Trier parecem combinar tortura psicológica e um brilhante exercício de estilo. Gênio contestado por uns, aclamado por outros, Lars von Trier é um cineasta profundamente visceral, pessimista e ousado. Único. Ninguém sai incólume de seus filmes. Um imenso desconforto nos acompanha do início ao fim e, por vezes, mesmo após a projeção.
Lars von Trier foi, ao lado do também incrível Thomas Vinterberg,  um dos fundadores do Dogma 95, movimento cinematográfico vanguardista, que pregava um certo “voto de castidade”, ou seja, o cumprimento de certas regras na prática do cinema. O movimento procurava por em primeiro plano a história, as performances e os temas, banindo o uso de efeitos especiais e o abuso dos recursos tecnológicos. Os Idiotas (1998), filme cult do diretor, é tido como um dos principais exemplares desse movimento. Outras grandes realizações do diretor são Ondas do Destino (do qual falaremos a seguir), Dogville (famoso por ter sido filmado em um palco e com um cenário nada convencional que consistia em marcas no chão e alguns objetos), Dançando no Escuro (musical premiado com a Palma de Ouro em Cannes e brilhantemente estrelado pela cantora Björk), Anticristo (um dos filmes mais polêmicos e radicais do diretor, um “filme de terror freudiano”) e Melancolia (seu último projeto a sair no cinema, altamente existencialista).
Lars von Trier costuma trabalhar em torno de temas e trilogias. Assim ele criou a trilogia “do coração de ouro”, composta por Dançando no EscuroOs Idiotas e Ondas do Destino. A trilogia dos Estados Unidos (terra das oportunidades), composta por DogvilleManderlay e o ainda não produzido Wasington. Da sua mais recente trilogia, a da Depressão, fazem parte os filmes AnticristoMelancolia e o ainda inédito Ninfomaníaca. Nada menos do que nove filmes do diretor integraram a seleção oficial de Cannes desde 1984. O cineasta é também famoso por querer tirar o máximo de suas protagonistas, em um método de direção intenso que costuma levar os atores à exaustão. Björk, após trabalhar com ele, chegou a afirmar que não faria cinema novamente. Nicole Kidman também se mostrou “traumatizada” depois de trabalhar com Trier e não participou da sequência de Dogville. Sádico ou não, o diretor consegue tirar o melhor de seus atores e seus filmes contêm performances impressionantes. Não é por acaso que três atrizes dirigidas por ele ganharam  prêmios em Cannes (Björk, Charlotte Gainsbourg e Kirsten Dunst). Já Emily Watson concorreu ao Oscar de Melhor Atriz por Ondas do Destino. Trier foi indicado ao Oscar apenas uma vez, na categoria de Melhor Canção (!) por Dançando no Escuro.
Lars von Trier é também uma figura curiosa em outros aspectos. Além de ter crises de depressão, o cineasta é também um assumido “medroso”. Ele tem diversas fobias, como medo de voar (ele nunca foi aos Estados Unidos, por exemplo). Pelo visto, ele também tem poucas “aptidões sociais”. Durante uma entrevista coletiva no Festival de Cannes de 2011, o diretor fez uma brincadeira infeliz sobre Hitler que gerou grande repercussão. A partir de então, o diretor tornou-se persona non grata no festival. Um detalhe interessante de sua biografia é que sua mãe assumiu, no leito de morte, que o verdadeiro pai do cineasta era um músico e que ela engravidou desse homem para que o filho tivesse “genes artísticos”. 

Nenhum de vocês tem o direito de mandar Bess para o inferno!
Ondas do Destino é um dos filmes mais interessantes e tocantes do cineasta dinamarquês. O longa-metragem tem uma dimensão épica, tanto em sua estrutura, quanto em sua duração. Dividido em nove partes (sete capítulos, um prólogo e um epílogo), Ondas do Destino é ambientado nos anos 70, na Escócia. Grande parte da ação se passa num pequeno vilarejo dominado por cristãos conservadores e fanáticos. De certa forma, o comportamento dos habitantes desse lugarejo é controlado pelos beatos, os anciões do lugar. A vida, para eles, não é feita para a diversão, mas para servir a Deus. Além disso, a finalidade do sexo é unicamente a procriação e as mulheres ocupam um lugar de submissão perante os homens, não podendo nem mesmo falar na igreja. Trata-se também de uma comunidade fechada em que estrangeiros não são bem-vindos. A ameaça do inferno e a esperança da salvação pairam sobre a existência dessas pessoas, cujas vidas são regidas pela religião.
Bess é um fruto dessa comunidade, uma jovem simplória, de bom coração. Ela passou por uma grave crise quando o irmão morreu e, desde então, não foi a mesma. Quando a moça se apaixona por Jan, não-crente e operário em uma refinaria, a comunidade entra em choque. Apesar da desaprovação da maioria, Bess se casa. A moça descobre, assim, as delícias do casamento e do sexo e experimenta uma felicidade plena. Quando precisa separar-se do marido, ela entra em desespero e, consequentemente, em depressão. Ficar longe do amado é a coisa mais difícil para ela. Certo dia, uma tragédia acontece em sua vida. Após um grave acidente, Jan fica paralisado do pescoço para baixo. Em estado crítico, ele pede para que Bess faça amor com outro homem. Movida por uma fé incalculável, Bess passa a acreditar que de alguma forma seu sacrifício possa curar o marido. A medida em que a condição de Jan piora, ela vai tomando atitudes mais desesperadoras e grandiosas. Ao final, o filme toma uma dimensão cósmica comovente.

Eu não faço amor com eles, eu faço amor com Jan e o salvo da morte.
Um dos aspectos mais importantes de Ondas do Destino é a relação da protagonista com Deus, com a espiritualidade e com a fé. Lars von Trier mantém durante grande parte do filme uma certa ambiguidade: Bess é de fato um instrumento de salvação, uma pessoa iluminada por Deus, nutrindo com Ele uma especial forma de comunicação? Ou ela sofre de algum tipo de distúrbio, loucura? A que podemos atribuir seus impulsos autodestrutivos? Na parte final do filme, o cineasta parece optar por uma das interpretações. Louca ou profeta, a figura de Bess assemelha-se certamente a personagens bíblicos como Maria Madalena e o próprio Jesus Cristo. Afinal de contas, ela também atravessa um calvário e se sacrifica pelo bem de um pecador. Ao desafiar a lei imposta pela comunidade em que vive, Bess se transforma em uma pária e passa a ser perseguida e discriminada pelos seus. Há também nessa personagem um pouco da mártir católica Joana d’Arc. A maneira com a qual Lars von Trier filma o rosto expressivo de Emily Watson nos remete ao que Carl Theodor Dreyer fez com Maria Falconetti, no clássico A Paixão de Joana d’Arc (1928). Trier é, por sinal, um grande admirador de Dreyer, que também era dinarmaquês.
Impresssiona também no filme o uso constante da câmera na mão, o que confere um tom de documentário ao filme, além de gerar certo desconforto e apreensão no espectador. A colaboração do diretor com Robby Muller, diretor de fotografia, é extremamente bem-sucedida. Ondas do Destino não só provoca fortes emoções no espectador, como também pode gerar um desconforto físico, náuseas como se estivéssemos em mar aberto (o título ganha, assim, mais uma dimensão).

Deixe-me morrer! Eu sou mau na cabeça!
É difícil falar de Ondas do Destino, sem louvar a interpretação de Emily Watson. A performance da atriz inglesa pode ser comparada a uma força da natureza, a um soco no estômago. Watson confere uma imensa humanidade, vulnerabilidade e, principalmente, veracidade a uma personagem que poderia facilmente soar ridícula ou inverossímil. A câmera parece nutrir um caso de amor com o rosto da atriz e o espectador inevitavelmente se apaixona por Bess. O elenco ainda conta com os excelentes Stellan Skarsgård e Katrin Cartlidge.
Ondas do Destino fala de amor e de fé de uma maneira nada convencional. Trata-se de uma jornada emocional única, a que somente um diretor destemido e ousado como Lars von Trier poderia nos levar. 

Eu te amo não importa o que está na sua cabeça.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Clássicos da Cinemateca - A Noviça Rebelde

Raindrops on roses and whiskers on kittens 
Bright copper kettles and warm woolen mittens 
Brown paper packages tied up with strings 
These are a few of my favourite things 

The hills are alive with the sound of music / With songs they have sung for a thousand years / The hills fill my heart with the sound of music
Com o passar do tempo, muitas pessoas passaram a se referir à Noviça Rebelde como sendo um filme bobo, açucarado, fora de moda, cafona. Tais adjetivos escondem, por vezes, uma resistência ao gênero musical, principalmente àquele praticado na Era de Ouro de Hollywood. Quem não aprecia o gênero dificilmente dará valor a este clássico, que é, sem dúvida, um de seus exemplares mais bem sucedidos. É compreensível que certas pessoas torçam o nariz ao ver uma freira correr pelas colinas austríacas de braços abertos cantando a felicidade e o poder da música. Afinal, estamos acostumados a enxergar o mundo por uma ótica menos idealizada e mais pessimista, fruto de todos os problemas que nos rondam.
A Noviça Rebelde, ao contrário, se assemelha a um conto de fadas e é uma celebração otimista da vida, do amor, da família e, principalmente, da música. Alguns cinéfilos, hoje em dia, chegam a classificar este filme como sendo um guilty pleasure, como se fosse realmente um pecado gostar do musical. É comum que alguns filmes, principalmente os clássicos, se cristalizem na memória universal e que tenhamos ideias preconcebidas sobre eles, sem nos preocuparmos em (re)vê-los. Todos esses preconceitos e análises apressadas parecem camuflar o fato de que A Noviça Rebelde é um grande filme e merece a chance de ser redescoberto.

Doe, a deer, a female deer / Ray, a drop of golden sun / Me, a name I call myself / 
Far, a longer way to run / Sew, a needle pulling thread /  La, a note to follow So /  Tea, I drink with jam and bread / That will bring us back to Do,Do Do Do
A Noviça Rebelde foi um imenso sucesso de público, liderando o box office de 1965 e desbancando o recorde de bilheteria que pertencia, até então, a E o Vento levou (1939). O sucesso comercial foi tamanho, que dizem ser este o filme responsável por salvar o estúdio Fox, após o desastre financeiro que foi o caríssimo Cleópatra (1963). O musical é um dos poucos filmes a liderar a bilheteria do ano de seu lançamento e ganhar o Oscar de Melhor Filme (feito realizado, por exemplo, por Titanic e O Senhor dos Anéis – O Retorno do Rei). Por falar em Oscar, A Noviça Rebelde foi indicado a dez estatuetas, tendo levado cinco (Filme, Diretor, Edição de Som, Montagem e Trilha Sonora). A recepção da crítica foi mista. Já naquela época, a trama e músicas açucaradas incomodavam alguns críticos, como Pauline Kael, que foi uma das mais ferrenhas detratoras do filme. Outros críticos, em contrapartida, aclamaram as incontestáveis qualidades técnicas e a trama envolvente do musical.

When the dog bites, when the bee stings / When I'm feeling sad / I simply remember my favourite things / And then I don't feel so bad
Muitos não sabem, mas a história do filme é baseada em eventos reais. O filme de 1965 é uma adaptação do musical de mesmo nome produzido na Broadway em 1959. A peça, por sua vez, foi baseada no livro de memórias de Maria Augusta von Trapp (que no filme é interpretada por Julie Andrews) e em sua adaptação cinematográfica realizada na Alemanha em 1956, Die Trapp-Familie. Em 1958, foi lançada sua sequência Die Trapp-Familie in Amerika(1958). A Noviça Rebelde conta a história de Maria, uma jovem noviça que é chamada para cuidar dos sete filhos de um rígido capitão austríaco, Georg von Trapp, por quem acaba se apaixonando. Apesar de ser baseado em um caso verídico, o filme possui diversas discrepâncias com relação ao que de fato ocorreu. Obviamente, muito no filme foi romantizado. Por exemplo, em suas memórias, Maria assume que não estava apaixonada por Georg quando se casou com ele. Ela também não foi contratada para cuidar de todas as crianças, mas apenas da caçula, que doente, precisava de lições em casa.
Outras curiosidades: a entrada da família no ramo musical deveu-se sobretudo à precária situação financeira de Georg após investimentos desastrosos. A casa onde morava a família era muito mais modesta do que o palacete retratado no filme. A maioria dos nomes das crianças foram alterados para o filme, assim como certas datas. O personagem de Max Detweiler é inteiramente ficcional. Outra discrepância apresentada no musical diz respeito ao temperamento de Georg, mostrado como um homem extremamente severo, distante e sem senso de humor. Na realidade, o capitão era conhecido por ser carinhoso e bastante presente na vida das crianças. Segundo o depoimento de uma das filhas do capitão, era, na verdade, a madrasta Maria que tinha o temperamento mais difícil. A família von Trapp não teve nenhum controle sobre a maneira como eram representados no cinema, uma vez que haviam vendido os direitos da história para um produtor alemão nos anos 50. Este, por sua vez, os vendeu para Hollywood.

Edelweiss, Edelweiss / Every morning you greet me / Small and white, clean and bright / You look happy to meet me
A escolha do diretor de A Noviça Rebelde é um epopeia a parte. Muitos diretores foram sondados e convidados pelos produtores Darryl e Richard D. Zanuck para assumir o projeto (dentre eles, Robert Wise) e todos disseram "não". William Wyler, grande nome do cinema clássico norte-americano, finalmente aceitou a tarefa e começou a escolher locações e a modelar o script. No entanto, o diretor acabou  por sentir-se inadequado para dirigir o filme, ainda mais que seu coração estava em outro projeto, a adaptação do romance O Colecionador, que veio a se tornar um filme cult. Wyler foi liberado pelos produtores e Robert Wise aceitou substituir o colega.
Robert Wise foi, certamente, um dos diretores mais versáteis de Hollywood. Ele é geralmente conhecido pelos dois musicais que dirigiu, Amor Sublime Amor e A Noviça Rebelde, seus filmes mais populares e famosos, pelos quais ganhou dois Oscars de diretor. No entanto, ele não era nenhum especialista no gênero. Alguns críticos tendem a considerar que o seu melhor filme foi, na verdade, O Dia em que Terra Parou (1951), tido como uma obra-prima de ficção científica e um dos filmes mais influentes do gênero. Wise também dirigiu os ótimos Jornada das Estrelas: O Filme (1979) e o filme de guerra O Canhoneiro do Yang-Tsé (1966). Wise chegou a ser considerado um diretor menos autoral por se submeter às vontades do estúdio e imprimir pouco de seu estilo às  suas obras. Novas críticas, no entanto, valorizam o profissionalismo, a habilidade e o preciosismo do diretor, que soube lidar com os mais diferentes gêneros e orçamentos. 

You are sixteen going on seventeen / Baby, it's time to think / Better beware, be canny and careful / Baby, you're on the brink
A Noviça Rebelde é um testemunho do talento de Wise, que cria um filme cativante, pulsante, combinando brilhantemente drama, humor, romance e até mesmo sequências de ação. Além de tudo, nunca a paisagem austríaca apareceu tão bela no cinema (com o auxílio, claro, da excelente fotografia de Ted D. McCord). A grandiosa sequência de abertura do musical é certamente um dos momentos mais célebres do cinema. Extremamente difícil de ser realizada, a sequência foi filmada com a ajuda de um helicóptero. Segundo Julie Andrews, uma das maiores dificuldades durante as filmagens era se manter de pé devido a poderosa corrente de ar gerada pelo helicóptero.
O roteiro de Ernest Lehman lida bem com a grandiosidade da história, sabendo dosar o aspecto histórico do filme (a ascenção do nazismo como pano de fundo) e a história de amor dos protagonistas. O coração do filme é, no entanto, sua trilha sonora, composta pelas belíssimas canções de  Richard Rodgers e Oscar Hammerstein II: "Edelweiss", "My Favorite Things", "Climb Ev'ry Mountain", "Do-Re-Mi", "Sixteen Going on Seventeen", "The Sound of Music”, entre outras músicas que grudam na cabeça. Obviamente, essas músicas não são as mesmas que a verdadeira família von Trapp cantava em suas apresentações.
O grande elenco do filme é comandado pela incomparável Julie Andrews (indicada ao Oscar), com seu ótimo timing cômico, sua jovialidade e sua belíssima voz. O elenco ainda conta com os excelentes Christopher Plummer (que é dublado nos números musicais por  Bill Lee), Peggy Wood (indicada ao Oscar), Eleonor Parker, Charmian Carr e um grupo adorável de atores mirins.
Apesar de ser um clássico amado por diversas gerações, A Noviça Rebelde, é, hoje em dia, um filme pouco assistido, principalmente, pelos jovens cinéfilos. É fácil dizer que o filme envelheceu mal sem de fato lhe dar uma chance. Na realidade, o musical é um prato cheio para quem ama cinema e, ainda hoje, pode arrebetar muitos corações. O American Film Institute listou o filme como sendo um dos 100 melhores de todos os tempos (40ª posição) e um dos melhores musicais (4ª posição).

So long, farewell, auf wiedersehen, good night / I hate to go and leave this pretty sight / So long, farewell, auf wiedersehen, adieu / Adieu, adieu, to yieu and yieu and yieu