sexta-feira, 31 de maio de 2013

Clássicos da Cinemateca - India Song

“Eu vim à India por causa de India Song. Essa música me dá vontade de amar.”

Eu te amo… até não mais poder enxergar… escutar… morrer.
Dois dias de uma história de amor que se passa em plena monção de verão na Índia dos anos 30. Várias vozes sem rostos falam entre si sobre o que se passou com Anne Marie Stretter durante esses dois dias. Ao redor dessa mulher magnífica, esposa do embaixador da França, gravitam vários homens, dentre eles o vice-cônsul da França em Lahore, o enigmático Michael Richardson e um jovem adido da embaixada. Durante uma recepção na embaixada da França, o vice-cônsul gritará aos quatro ventos o amor que ele sente por Anne Marie Stretter.
Muitos poderão dizer que nada se passa em India Song (1975), obra-prima de Marguerite Duras. No entanto, em meio a tantas vozes, tanto silêncio, TUDO acontece.

Nós não temos nada a dizer um ao outro. Nós somos o mesmo. As histórias de amor, você viva com os outros. Nós não precisamos disso.
No interior da mansão, os brancos se reúnem para amar. Do lado de fora, a lepra, a miséria, a peste assolam a região. Ao longe ou de maneira invasiva, ouve-se os gritos e o canto de uma mulher enlouquecida, uma mendiga de Laos. Uma confusão de vozes sugere vários amores passados, presentes, vividos, vários fragmentos de vida, lembranças. Os personagens andam ritmados, coreografados, dentro de uma mansão quase fantasmagórica, quase abandonada. A simetria está em tudo, na disposição dos personagens, nos objetos, tudo é meticulosamente pensado, refletido, dirigido. Tudo tem seu tempo; a lentidão dos acontecimentos preenche de significados cada gesto. 

Diríamos que ela é prisioneira de um tipo de sofrimento. Ninguém sabe exatamente o que se passa atrás desses muros. O que ela faz.
Os personagens não cessam de se movimentar dentro do espaço reduzido de um salão. Trata-se de uma valsa, de um balé de corpos. Eles dançam juntos e à distância, em um movimento constante de aproximação e distanciamento. Todos estão de passagem nesse lugar. São pessoas exiladas, despatriadas, perdidas na Ásia onde todos os amores acontecem. Dentro da mansão, parece que todos os lugares, reais e imaginários, se concentram: o Ganges, Laos, Calcutá, Lahore, Veneza. O poder de evocação da palavra é incrível. No centro do salão, um imenso espelho multiplica os personagens. O espelho reflete o amor que é duplo, dividido, partilhado. O amor de uma mulher adúltera. 

Você sabe, quase nada é possível na Índia. É o que podemos dizer. Não é nem doloroso, nem agradável viver na Índia. Nem fácil. Nem difícil. Não é nada. Você vê? Não é nada.
Em India Song, o som se dissocia da imagem. Os personagens falam em silêncio. Eles parecem ausentes, distraídos enquanto ouvem as vozes (dentre elas, a voz da própria Duras, inconfundível para quem a conhece). A imagem não é a simples tradução do que dizem as vozes sem rostos. As duas dimensões, o som e a imagem, se refletem para contar uma história. O balé de vozes, os corpos em movimento se combinam com a alternância entre os planos fixos e as panorâmicas laterais, circulares e os travellings. A câmera dança como os personagens, que não cessam de procurar algo com os olhos, de se olharem. Marguerite Duras faz um cinema de procura. Ela tenta apreender o mistério do amor. A dor de amar é liberada no grito arrasador do vice-cônsul, o clímax do filme. 
Como Vênus, a deusa do amor, a atriz Delphine Seyrig dá vida à Anne Marie Stretter. Ela posa para a câmera, ela é a musa de Duras. Em alguns planos, tudo se imobiliza e parece que estamos diante de pinturas. Há também algo de ritualístico, de místico, nessa história de amor que conta Duras. A natureza, o “verde”, a belíssima música de Carlos d’Alessio, a melodia de "India Song" preenchem o filme. No final, Anne Marie Stretter nos escapa de vez nos confins do salão. Ela é a prefiguração da morte, da ausência. India Song, escrito e dirigido por uma das artistas mais fascinantes do século 20, é uma obra-prima difícil, quase inacessível, incomum. Se a escrita de Duras se revela por vezes cinematográfica em seus romances, seu cinema tem algo de literário e, definitivamente, poético.
Marguerite Duras (1914-1996)

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Clássicos da Cinemateca - A Filha de Ryan

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A Filha de Ryan foi mal recebido pela crítica, mas foi um sucesso de bilheteria, tendo arrecadado cerca de 31 milhões de dólares.

Um fracasso monumental. Este foi o consenso após o lançamento de A Filha de Ryan, em 1970. Chuvas de críticas tombaram sobre David Lean, em seu projeto mais pessoal, mais querido. Pauline Kael, uma das críticas mais renomadas dos Estados Unidos, liderou os ataques ao diretor britânico. Um filme grandioso demais, épico demais, para um tema tão corriqueiro: um simples adultério. Os mesmos críticos que rechaçaram o filme de Lean, louvaram no mesmo ano, Love Story, melodrama açucarado que se tornou refêrencia de bom filme na década de 70. No comments, dirá ironicamente o compositor Maurice Jarre, em uma entrevista, a respeito desse fenômeno inusitado.
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Marlon Brando chegou a aceitar o papel do Major Doryan, mas foi obrigado a abandonar o projeto devido às filmagens de outra produção. Peter O’Toole e Richard Harris foram considerados, mas o papel ficou com Christopher Jones, pouco conhecido na época. David Lean se arrependeu da escolha.
Desnorteado e decepcionado com tantas críticas, David Lean ficou 14 anos sem dirigir outro filme para o cinema. O diretor, que emplacou imensos sucessos consecutivos desdeDesencanto (1945), aparentemente não estava mais na moda. O cinema ficou pequeno de repente. O sensacional, o épico, o grandioso passaram a ser características pouco apreciadas. David Lean never gets leaner, mocavam os críticos. A Filha de Ryan é, ainda hoje, um filme pouco conhecido de David Lean, mas seu status evoluiu com o tempo. Poucos críticos ousariam dizer, hoje em dia, que se trata de uma obra menor do diretor. Ao contrário, alguns especialistas apontam que este é o filme em que os elementos da filmografia de Lean encontram seu ápice técnico e formal. Incompreendido na época de seu lançamento, o filme é visto hoje como uma obra-prima (fenômeno bastante recorrente na história do cinema). 
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A Filha de Ryan foi o penúltimo filme de David Lean. Seu filme seguinte foi Uma Passagem para a Índia (1984).
Não é segredo que o adultério é um dos temas preferidos de David Lean, basta pensarmos em Dr. Jivago (1965), Desencanto (1945), A História de uma mulher (1949) e, claro, A Filha de Ryan. Não é difícil encontrar um paralelo entre esse tema recorrente da filmografia do cineasta e sua vida pessoal, afinal ele foi um homem de muitas mulheres e de muitos affairs. Robert Bolt, o roteirista do filme (e parceiro habitual de Lean desde Lawrence da Arábia), se inspirou numa das histórias de adultério mais famosas da literatura, o romance Madame Bovary, de Gustave Flaubert. No entanto, existe uma diferença essencial entre as duas obras. Sob Emma Bovary pesava a ironia mordaz de Flaubert. Lean, por sua vez, se identifica com Rose Ryan e não faz dela um personagem ridículo. Ela é verdadeiramente uma heroína romântica. O cinema de Lean não é um cinema da derrisão, da ironia, da paródia.
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A Filha de Ryan foi indicado aos Oscars de Melhor Atriz (Sarah Miles) e Melhor Som (Gordon McCallum, John Bramall) e ganhou os de Melhor Fotografia (Freddie Young) e Melhor Ator Coadjuvante (John Mills).
Um paradoxo alimenta o cinema de Lean: apesar de extremamente romântico, o cineasta tinha dificuldade em representar as emoções em seus filmes. Assim, suas principais obras combinam romantismo e certa frieza no tratamento do pathos. Este é definitivamente um dos grandes charmes de sua filmografia. O gênero épico vai de encontro ao temperamento romântico do cineasta. Assim, A Filha de Ryan, uma aventura sentimental de uma mulher adúltera, ganha contornos grandiosos. O filme se passa num pequeno vilarejo irlandês. Rose Ryan (Sarah Miles), filha de um dono de bar, assídua leitora de romances (como Madame Bovary), é apaixonada pelo professor Charles Shaughnessy (Robert Mitchum), um homem mais velho e viúvo. Eles se casam, mas a vida de casada não corresponde ao imaginário romântico da personagem. Frustrada, a moça vive uma vida sem emoções até a chegada de um major inglês, Randolph Doryan (Christopher Jones), traumatizado de guerra. Os dois personagens se apaixonam perdidamente e iniciam um tórrido caso de amor.
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A atriz Sarah Miles era casada com o roteirista Robert Bolt. Eles se divorciaram em 1975.
O cenário espetacular de A Filha de Ryan contribui ao caráter épico do filme. Lean explora a beleza e a diversidade das paisagens irlandesas, as belas falésias, as praias, os rochedos e os campos. O cineasta demonstra um fascínio pelo sublime da natureza. O nascer do sol dos créditos iniciais confere uma dimensão cósmica à narrativa. Na sequência de abertura, a silhueta esguia de Rose Ryan aparece em meio à imensidão de uma paisagem de tirar o fôlego. A beleza da composição e das cores nos faz pensar em quadros de Monet, como Mulher com guarda-chuva e Passeio sobre o monte em Pourville. A sequência de abertura mostra a magnificência da paisagem em oposição ao indívido, pequeno e frágil. A comunhão com a natureza é também explorada em uma das cenas mais belas do filme (e da carreira de Lean), aquela em que Rose e o soldado fazem amor em um bosque. Nesta cena, os elementos da natureza são cúmplices dos amantes. A natureza é dotada de vida própria e ela parece se animar. A associação do ato sexual e a natureza não é somente de ordem metafórica, mas também mágica. A cena corresponde ao momento em que David Lean explora de maneira mais radical na sua filmografia a relação entre a sensualidade e a paisagem. 
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Robert Bolt escreveu o papel do padre Collins para Alec Guinness, que recusou o convite. O papel ficou com Trevor Howard. O ator trabalhou em três filmes de Lean. Ele protagonizou a obra-prima Desencanto.
A Filha de Ryan contém outros momentos antológicos. Na cena do primeiro encontro de Rose e o soldado, a atração sexual faz com que os personagens se sintam desconectados do resto do mundo, algo que é acentuado pela iluminação. Outro belíssimo momento do filme é aquele em que o marido compreende que Rose o trai através de pegadas na areia. A sequência do resgate de armas pelos habitantes do vilarejo em meio à tempestade é extremamente realista e brilhantemente dirigida por Lean. Por fim, a cena em que a população se revolta contra Rose é definitivamente uma das mais fortes e violentas do filme.
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Alguns críticos atacaram a duração do filme (206 minutos) e o seu ritmo lento. 
A incrível fotografia de Freddie Young contribui para que o filme seja visualmente arrebatador. E o que dizer da bela trilha sonora de Maurice Jarre? O compositor francês afirmou certa vez ser este o seu trabalho favorito. Além de ser tecnicamente brilhante, o filme conta com um grande elenco. Sarah Miles, indicada ao Oscar por sua performance, confere complexidade a sua personagem, uma heroína romântica confrontada ao mundo real. O grande Robert Mitchum oferece uma atuação delicada e sensível como o marido traído. Os veteranos Trevor Howard e Leo McKern brilham em cada cena e John Mills, ganhador do Oscar de Melhor Ator Coadjuvante, dá um verdadeiro show como Michael, o “bobo” do vilarejo. 
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O ator Christopher Jones foi dublado no filme por Julian Hollaway. David Lean não achou que a voz do ator fosse adequada para o personagem.
Em A Filha de Ryan, David Lean dá dimensões épicas a uma história de amor. Trata-se de um dos filmes mais bonitos do cineasta britânico e o menos conhecido da segunda fase da carreira do diretor. Esta obra-prima merece ser vista e revista!