terça-feira, 20 de novembro de 2012

Clássicos da Cinemateca - O Anjo Exterminador (1962)


"O inferno são os outros!"
Jean-Paul Sartre 
"Me siento confuso. ¿Qué sucede aquí? No sé cómo hemos podido llegar a esto,
pero 
todo tiene sus límites."
Há pouco mais de 50 anos, Luis Buñuel lançava O Anjo Exterminador, um dos seus filmes mais controversos. Filmado no México, O Anjo Exterminador estreou no Festival de Cannes, no mesmo ano em que o brasileiro O Pagador de Promessas (1962) levou a Palma de Ouro no festival. O 26º longa-metragem do cineasta espanhol dividiu opiniões. Enquanto alguns críticos louvavam essa "obra-prima de violência, crueldade e ironia", outros assumiam não compreender nada desse filme "estranho e confuso". Apesar de não ter sido unanimidade entre a crítica, na época de seu lançamento, O Anjo Exterminador, cujo roteiro também é de Buñuel, é visto, hoje, como uma das obras-primas mais significantes da filmografia do diretor, ao lado de O Cão Andaluz (1929), Viridiana (1961), A Bela da Tarde (1967) e O Discreto Charme da Burguesia (1972). A sinopse de O Anjo Exterminador revela o caráter ousado e provocador dessa obra. Ao sair de um concerto, o casal Edmundo e Lucia Nobile convidam alguns amigos para jantarem em sua mansão. Pouco antes do luxuoso jantar, todos os criados da casa se precipitam a ir embora, deixando o mordomo sozinho para realizar os serviços domésticos. Algo estranho acontece, na hora dos convidados partirem para suas respectivas casas: eles e os anfitriões se mostram incapazes de sair de um dos salões da mansão, onde acabam por passar a noite. No dia seguinte, o estranhamento aumenta quando as pessoas se dão conta da impossibilidade de abandonar o espaço onde se encontravam, ainda que nenhuma barreira concreta os impedisse. Progressivamente, a relação entre os personagens vai se transformando, as máscaras vão caindo e atitudes extremas vão sendo tomadas.
"Yo creo que la gente del pueblo, la gente baja, es menos sensible al dolor,
¿Usted ha visto un toro herido alguna vez? Impasible."
Luis Buñuel é um dos maiores nomes do cinema europeu. Nascido em 1900, em Calanda, pequena cidade espanhola, Buñuel deu seus primeiros passos no cinema em Paris, para onde se mudou em meados dos anos 1920. A estreia do diretor no cinema não poderia ser melhor. Em 1929, ele lançou o curta-metragem O Cão Andaluz, uma obra-prima do surrealismo. Ainda que sua filmografia não se restrinja à estética surrealista, esse movimento artístico influenciará toda sua obra cinematográfica. A filmografia de Buñuel é centrada no irracional, nos impulsos inexplicáveis do ser humano, nos desejos inconscientes, no olhar crítico sobre os vícios da burguesia. O cineasta manifesta grande interesse pelos comportamentos não convencionais, pelos sonhos e pelos mistérios da alma humana. Em seus quase 50 anos de carreira, Buñuel trabalhou na França, nos Estados Unidos, na Espanha e no México, onde ele realizou 20 de seus 32 filmes, dentre eles, O Anjo Exterminador.
O Anjo Exterminador foi realizado com poucos recursos e com um orçamento bastante limitado. Buñuel chegou a afirmar, em seu livro de memórias, que volta e meia se via arrependido de ter realizado o filme no México. Ele acreditava que a história deveria se passar em cidades como Londres ou Paris, com atores europeus e com figurinos, cenários e acessórios muito mais luxuosos do que aqueles dos quais dispôs para a realização do filme em 1962. Para ele, o estilo "alta-sociedade" mostrado no filme era muito mais próximo da realidade europeia do que da realidade mexicana. Apesar de ter desfrutado de total liberdade criativa, o que nem sempre ocorreu nas produções mexicanas que realizou, Buñuel afirmou posteriormente que gostaria de ter ido ainda mais longe com a trama e que, na época, impôs uma censura a si mesmo. Segundo o diretor, se pudesse realizar o filme novamente, "deixaria os personagens presos um mês até que eles praticassem o canibalismo".
"Observen lo satisfecho que sigue vivo el viejo espíritu de la improvisación."
Em O Anjo Exterminador, Buñuel contou com atores mexicanos, conhecidos no país por seus trabalhos em melodramas. Naquela época, algumas críticas eram feitas à maneira de interpretar desses atores. No entanto, o diretor, que sempre se mostrou bastante habilidoso ao trabalhar com os recursos disponíveis, parece aproveitar até mesmo as limitações de seu elenco para criar personagens que são, sobretudo, "tipos" e alegorias sociais. O nome mais famoso do elenco é o de Silvia Pinal, atriz que protagonizou Viridiana (1961), filme de grande sucesso de Buñuel. Viridiana foi realizado na Espanha e ganhou a Palma de Ouro em Cannes, em 1961.
A impressão de caos e desordem em O Anjo Exterminador é fruto do trabalho extremamente preciso e eficaz da direção e montagem. O filme é construído a partir de múltiplas cenas breves. A câmera passa constantemente de um personagem a outro criando uma estrutura fragmentada e descontínua. Tal procedimento permite a não hierarquização dos personagens, ou seja, não existe uma diferenciação entre protagonistas e coadjuvantes. O filme promove, assim, uma equivalência de papéis, fugindo do esquema narrativo tradicional.
"Al levantar la tapa he visto un gran precipicio y al fondo las aguas claras de un torrente."
A linearidade narrativa é constantemente colocada à prova. Não existe uma relação de causa e efeito entre os diversos microacontecimentos da trama. Em um minuto, podemos ter cinco breves cenas (com diferentes personagens) que nada têm a ver uma com a outra. Buñuel investe também em figuras de repetição (repetição de falas, de planos, de enquadramentos) que são igualmente uma forma de transgressão e subversão da narração tradicional. Outro elemento transgressor, que também contribui para o caos narrativo, é o conjunto de frases enigmáticas e, muitas vezes, sem significados explícitos pronunciadas pelos personagens. A fragmentação narrativa mimetiza o caos dos acontecimentos e a confusão psicológica dos próprios personagens, aumentando ainda mais a sensação de desordem e angústia.
O espaço é um elemento fundamental em O Anjo Exterminador. A história se passa quase integralmente em um mesmo lugar, que paradoxalmente não é um huis clos (um espaço fechado), mas funciona como tal. A sala onde se desenvolve grande parte da ação não é apenas um espaço físico, mas se transforma também em espaço psicológico. A transformação física e comportamental dos personagens acontece de forma progressiva e é acompanhada pela destruição também progressiva do espaço.
"La vida es divertida."
O diretor cria um universo apocalíptico (a referência bíblica encontra-se no título) e, através do fantástico e do sobrenatural, lança o seu olhar crítico e agudo sobre o comportamento do homem em sociedade, apontando o individualismo, o egoísmo, a crueldade, a fraqueza, a hipocrisia e outros monstros internos que o homem esconde atrás de sua máscara. Buñuel pinta a humanidade por detrás das aparências.
Obviamente, a burguesia é o alvo principal do diretor, que ridiculariza a superficialidade de toda uma classe social. Com uma ironia mordaz, ele mostra o que há de menos civilizado entre aqueles que se julgam mais civilizados. No entanto, como o próprio cineasta afirmou em uma entrevista, os rumos da história não seriam tão diferentes se, ao invés da alta sociedade, fossem retratados operários e camponeses. Buñuel fala de algo que é inerente à condição humana. Em condições extremas, o homem revela a sua verdade mais feroz.
O Anjo Exterminador é uma fábula sem moral e um enigma sem solução, uma obra-prima desconcertante, instigante, que tem o poder de provocar diversas reflexões e interpretações, sem jamais nos apontar um caminho único.

"Es preferible la muerte a este ambiente tan descuidado."

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Clássicos da Cinemateca - Ernst Lubitsch e "Ser ou não Ser" (1942)


Divulgação
É dificil falar de comédia no cinema norte-americano sem mencionar Ernst Lubitsch. O cineasta alemão emigrou em 1922 para os Estados Unidos, onde se firmou como um dos primeiros grandes mestres da comédia em Hollywood. Dono de um estilo único, Lubitsch se notabilizou por abordar assuntos sérios e ancorados na realidade de sua época de uma maneira bem-humorada e sofisticada. A elegância, o olhar crítico, a sagacidade e a malícia refinada do diretor são marcas desse estilo que ficou conhecido pela expressão “the Lubitsch Touch” (o Toque Lubitsch).
Grandes nomes do cinema norte-americano, como Billy Wilder, Howard Hawks e William Wyler, reverenciaram o talento de Lubitsch e destacaram o legado que ele deixou para o cinema. Lubitsch era, por sinal, um dos diretores favoritos de Billy Wilder. Reza a lenda que após a morte do ídolo, Wilder pregou uma placa na porta de seu escritório com a pergunta:“How would Lubitsch do it?” (Como Lubitsch faria isso?).
Assista ao vídeo em que Billy Wilder fala do Toque Lubitsch.
A fase alemã de Lubitsch conta com vários sucessos, entre dramas e comédias. Alguns dos primeiros filmes do diretor alcançaram fama internacional, como Carmen (1918), Madame du Barry (1919), A Princesa das Ostras (1919) e Amores de Faraó (1922). No final dos anos 1910, o nome do cineasta ficou conhecido na Europa e posteriormente nos Estados Unidos. A atriz Mary Pickford foi a responsável por levar Lubitsch para Hollywood, onde ele veio a dirigir os seus filmes mais famosos, dentre os quais se destacam: Ladrão de Alcova (1932), Ninotchka(1939), A Loja da Esquina (1940), Ser ou Não Ser (1942) e O Diabo Disse Não (1943).
O diretor trabalhou com algumas das maiores estrelas da Era de Ouro de Hollywood. Além de Mary Pickford, Lubitsch dirigiu James Stweart, Miriam Hopkins, Melvyn Douglas, Gary Cooper, Claudette Colbert, Gene Tierney, Maurice Chevalier, Carole Lombard e Greta Garbo. A única parceria de Lubitsch e Garbo é antológica. Em Ninotcka (clássico co-escrito por Wilder) o diretor alemão dirigiu Garbo em um raro momento cômico da estrela no cinema. A bela atriz era conhecida por seus papéis dramáticos e por sua personalidade reservada e misteriosa. O estúdio MGM promoveu o filme com a frase “Garbo ri!”
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Pôster do filme Ser ou Não Ser.
Ser ou Não Ser (1942) é tido como uma das maiores obras-primas de Lubitsch. A história se passa em plena Segunda Guerra Mundial, na Polônia, durante a ocupação nazista. O filme focaliza uma trupe de atores, liderados por Joseph Tura (Jack Benny) e sua esposa Maria (Carole Lombard), que se infiltram na Gestapo para salvar membros da resistência polonesa. O brilhante roteiro foi escrito por Edwin Justus Mayer, com o auxílio de Lubitsch, a partir da história original de Melchior Lengyel.
Ser ou Não Ser é, ao lado de O Grande Ditador (1940), um dos filmes mais contudentes contra o nazismo a serem lançados durante a Segunda Guerra Mundial. Essa sátira mordaz e inteligente é uma forma de Lubitsch (judeu alemão) sensibilizar os americanos sobre os horrores da guerra através do riso, provando que a comédia tem o poder de atingir as pessoas e de comunicar os problemas do mundo. A beleza do filme, no entanto, não se reduz a uma mensagem política. A obra-prima de Lubitsch é a combinação magistral de diversos elementos, sendo ao mesmo tempo uma divertida guerra de sexos, em que são mostrados os dilemas de um casal em crise, um tratado sobre os bastidores do teatro (daí a referência do título à famosa frase shakespeareana) e uma declaração antibélica. Talvez a lição mais bela do filme seja a de que a ficção e a arte podem salvar o mundo. E é como uma alegoria do poder da arte que o filme se revela universal e atemporal.
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Carole Lombard e Jack Benny em cena do filme.
Jack Benny tem a melhor performance de sua carreira na pele do vaidoso ator Joseph Tura e a bela Carole Lombard está magnífica como Maria Tura. Lombard, que era casada com o galã Clark Gable na época, chegou a afirmar que trabalhar em Ser ou Não Ser foi uma das experiências mais felizes da sua vida profissional. Infelizmente, a atriz veio a falecer em um acidente de avião antes mesmo do lançamento do filme. Ela tinha apenas 33 anos e voltava de uma viagem que tinha como objetivo a arrecadação de fundos para o auxílio às tropas norte-americanas. O ótimo elenco do Ser ou Não Ser também conta com Robert Stack, Felix Bressart, Lionel Atwill, Stanley Ridges e Sig Ruman.
Ser ou Não Ser não foi bem recebido inicialmente pela crítica e por parte do público. Muitos consideraram o filme de mau gosto. Não é de se espantar. Na época de seu lançamento, Pearl Habor havia sido atacado, as tropas alemãs devastavam a Europa e a estrela do filme havia morrido em uma missão patriótica. Com o tempo, no entanto, a comédia foi alçada à condição de clássico absoluto da sétima arte. Ser ou Não Ser foi eleito uma das melhores comédias de todos os tempos pela revista Premiere e pelo Instituto Americano de Cinema (AFI). A obra-prima de Lubitsch é uma comédia engenhosa, complexa, que vai da sátira ao humor negro de uma maneira sublime. O clássico de 1942 é um dos maiores legados de um dos primeiros mestres do humor do cinema hollywoodiano.
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Anúncio de Ninotchka, clássico de Lubitsch.