terça-feira, 30 de julho de 2013

Clássicos da Cinemateca - Viagem à Itália

Percebi pela primeira vez que… somos como estranhos um para o outro. 
 
Diga! Eu quero ouvir você falar que me ama.
Grande fracasso de bilheteria, esnobado e ridicularizado no ano de seu lançamento, Viagem à Itália (1954), dirigido pelo cineasta italiano Roberto Rossellini, foi tido por boa parte dos críticos da época como uma aberração por focalizar a vida de um casal de classe média-alta (ainda por cima inglês), entediado, aborrecido e desocupado, em uma trama em que nada acontece e que não vai a lugar nenhum. "Quanto desperdício escalar Ingrid Bergman e George Sanders, duas estrelas consagradas, num filme como esse!" – pareciam exclamar os críticos em uníssono. Como já sabemos, na história do cinema, o mundo dá voltas. Viagem à Itália foi resgatado do limbo pelos críticos do Cahiers du Cinéma, que o alçaram à condição de obra-prima: “o primeiro filme moderno”. Tais críticos (ninguém menos que Jean-Luc Godard, Jacques Rivette, François Truffaut e Claude Chabrol) iniciariam no final dos anos 50 o movimento da Nouvelle Vague, um dos mais importantes da história do cinema. Hoje, Viagem à Itália é visto como um marco cinematográfico, uma obra-prima essencial que influenciou toda uma geração de grandes cineastas. 

Eu queria que você descansasse. Não me passou pela cabeça que era tão chato para você ficar sozinho comigo.
Em Viagem à Itália, Katherine (Ingrid Bergman) e seu marido Alex (George Sanders) fazem uma viagem a Nápoles para acertar a venda de uma propriedade que um tio deixara de herança. Essa viagem de negócios (e de prazer, como acrescenta Katherine) acaba por revelar o desgaste da relação do casal. Ao sair da rotina doméstica, os dois personagens se veem diante do desafio de suportarem a companhia um do outro. A convivência revela-se cada vez mais difícil à medida que o filme avança. Ambos começam a questionar suas escolhas, seus sentimentos e a possibilidade de continuarem casados. O conflito de personalidades contribui para o distanciamento do casal. Se Alex é um homem extremamente cínico, crítico e seco, Katherine é uma mulher carente, romântica e frustrada. O maior problema do casal, no entanto, é a dificuldade que ambos têm de expressar seus reais sentimentos. Um jogo de forças, provocações e ciúmes se instaura entre eles, já que nenhum dos dois quer dar o braço a torcer e assumir seus medos e angústias.
 
Essa é a primeira vez que estamos verdadeiramente sozinhos desde que nos casamos.
É interessante como Rossellini estabelece uma relação entre o descobrimento de um território novo, de uma cultura diferente e a irrupção da crise no casamento dos protagonistas. A Itália é um ambiente completamente exótico (por vezes inóspito) para Alex e Katherine e a viagem os deixa claramente ansiosos e nervosos. O casal, habituado à ordem e à serenidade de sua rotina na capital inglesa, se vê repentinamente mergulhado no caos e na vivacidade do modo de vida italiano. Alex, um homem de negócios, que aparentemente vive para o trabalho, é obrigado a ficar à toa, o que é definitivamente angustiante para ele. Algo parecido ocorre com Katherine. Mais aberta à cultura local, ela tenta ocupar seu tempo com passeios turísticos, mas se vê atormentada pela solidão. Fora de seu habitat natural, os personagens se sentem vulneráveis. A descoberta de um novo mundo, o encontro com o Outro, provoca o olhar dos personagens para a sua própria individualidade e para o tipo de relação que eles consolidaram ao longo dos anos. O ócio e o tédio que eles experimentam durante a viagem contribuem para que eles se confrontem com certas questões que andavam adormecidas.
 
Após oito anos de casamento, parece que a gente não conhece nada um sobre o outro.
Rossellini confere um tom meditativo e misterioso a seu filme. O diretor foge da dramatização e do exagero, focalizando o crescente desconforto dos personagens e a dolorosa tomada de consciência do casal sobre a realidade de seu casamento. As manifestações culturais, a religião, as crenças locais são exploradas brilhantemente pelo cineasta. O choque cultural e a alteridade são fontes de estranhamento e reflexão para os personagens. A fertilidade das mulheres italianas faz com que Katherine questione sua decisão de não ter filhos. A exumação dos corpos, moldados em gesso, de um casal, em Pompeia, emociona e perturba os personagens e os fazem encarar o fato de que talvez não terminem juntos os seus dias. Os corpos dos amantes petrificados, vítimas do Vesúvio, é o próprio símbolo do amor. Trata-se de uma imagem terrivelmente comovente para Alex e Katherine, que se veem às vésperas de uma separação. Eles ainda se amam, obviamente, mas o orgulho e a dificuldade de comunicação os separam. 
 
Em casa tudo parece tão perfeito, mas agora que estamos longe, sozinhos…
A câmera de Rossellini permanece paciente ao longo de todo o filme, permitindo que os personagens se desenvolvam, valorizando assim cada gesto e cada pequeno acontecimento. Grande parte do filme foi feito a partir da improvisação. Dessa forma, Rossellini alcança um nível incrível de naturalismo no  filme. É importante salientar que Roberto Rossellini é um dos maiores ícones do neorrealismo italiano, movimento que se caracterizou por focalizar as dificuldades econômicas da Europa do pós-guerra, a pobreza, o conflito de classes, o quotidiano opressor das camadas mais pobres e a injustiça. O tema de Viagem à Itália se distancia, portanto, do neorrealismo italiano. No entanto, o que há de mais real que um casal que se descobre em crise? Sem dúvida, esse filme marca uma evolução na filmografia do diretor, que se afasta do neorrealismo estrito em direção a um cinema “moderno” e mais intimista e, por essa razão, Viagem a Itália é considerado um filme pioneiro. Há um pouco do filme de Rossellini em O Desprezo, de Godard, por exemplo, que também conta a história de um casal em crise. Não é por acaso que no filme do diretor francês aparecem pôsteres deViagem à Itália no cenário. Trata-se de uma homenagem e uma citação explícita. 
Viagem à Itália é protagonizado pelo inglês George Sanders e pela sueca Ingrid Bergman, com quem o diretor era casado na época. Os personagens se revelam, a princípio, bastante antipáticos. Sanders interpreta como ninguém o tipo arrogante, sarcástico e frio, algo que ele fez diversas vezes em sua carreira. Bergman é o coração do filme, uma vez que ela demonstra, com bastante sensibilidade, a instabilidade de sua personagem e a evolução de seus sentimentos. À medida que o filme avança, o espectador passa a se identificar com esses indivíduos extremamente humanos e falhos. 
Rossellini nos legou grandes obras-primas como Roma, Cidade Aberta (1945), Paisá (1946), Alemanha, Ano Zero (1947) e Stromboli (1950). Ainda que Viagem à Itália não seja o filme mais famoso do diretor, ele ocupa um lugar bastante especial na sua filmografia, sendo um dos filmes mais influentes de sua carreira.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Clássicos da Cinemateca - O Desprezo

Camille: Você gosta do meu rosto? Da minha boca? Dos meus olhos? Do meu nariz? Das minhas orelhas? / Paul: Sim, de tudo. / Camille: Então você me ama totalmente. / Paul: Te amo totalmente, ternamente, tragicamente… 
 
Prokosch: O que você pensa de mim? Camille: Entre no seu Alfa, Romeu! Veremos isso depois!
Em 1960, Jean-Luc Godard fez tremer as bases da sétima arte com sua mais célebre obra-prima, O Acossado. O rebelde do cinema francês, grande expoente da nouvelle vague, lançou três anos depois O Desprezo, seu sexto longa-metragem de ficção, que foi realizado com um grande orçamento (algo incomum para os filmes do diretor) e filmado em CinemaScope. Baseado no romance Il Disprezzo, do escritor italiano Alberto Moravia, o filme é protagonizado por Brigitte Bardot, uma das maiores estrelas do cinema mundial nos anos 60, cuja beleza fazia fremir corações do mundo inteiro. O filme ainda conta com o excelente ator francês Michel Picolli e o inconfundível Jack Palance, galã americano de westerns e premiado com Oscar em 1991. Um dos maiores luxos a que se dá Godard é o de escalar Fritz Lang, brilhante cineasta de origem austríaca, para interpretar a si mesmo no filme. Com tantos bons ingredientes, a receita só poderia dar certo! 
 
Camille: É isso. Não te amo mais. Não há nada que explicar. Não te amo mais.
Sabe-se, no entanto, que o controle criativo não esteve totalmente nas mãos de Godard e que os produtores americanos exigiram a inclusão de cenas de nudez de Bardot para garantir o sucesso de bilheteria do filme nos Estados Unidos. Segundo Raoul Coutard, diretor de fotografia de O Desprezo, após enviarem a cópia já finalizada do filme ao produtor Sam Levine, a resposta foi: “Não, não, não, não está bom, eu quero ver a bunda de Bardot.” Diversos planos fetichistas mostrando os atributos da atriz foram então incluídos para atenderem a ânsia voyerista do produtor e do público masculino em geral. Godard e Alain Levent (substituto de Coutard, que já estava em outro projeto) conseguiram incluir tais planos de uma maneira orgânica e instigante. O sex symbol Bardot alcançara fama internacional com o clássico E Deus Criou a Mulher (1956), dirigido por Roger Vadin, seu marido na época.
Ícone absoluto da moda nos anos 60, alvo da adoração da imprensa e do público (a “Bardot mania”), celebridade preferida dos paparazzis, Brigitte Bardot (ou BB, como era também conhecida) era considerada uma das mulheres mais livres e fascinantes do mundo. Tendo encerrado sua carreira prematuramente, aos 40 anos, a atriz/cantora/modelo ganhou destaque posteriormente pelo seu ativismo na defesa dos animais. Infelizmente, após sua aposentadoria, sua imagem foi manchada por condutas racistas e homofóbicas, o que a fez responder a alguns processos e ganhar a antipatia de muitos franceses. Alguns críticos, como o francês Jean-Louis Bory, acreditam que a performance da atriz em O Desprezo corresponde ao ápice da sua carreira.
 
Paul: Não te cai bem falar palavrões. Camille: Ah é? Não me cai bem? Então escuta: Trou du cul, putain, merde, nom de Dieu, piège à cons, saloperie, bordel. E aí? Ainda acha que não combina comigo?
Em O Desprezo, Paul (Michel Piccoli) é um escritor contratado pelo produtor Jerry Prokosch (Jack Palance) para aprimorar e terminar o roteiro de um filme que está sendo dirigido por Fritz Lang (o próprio) na Itália. Trata-se da adaptação da Odisséia, de Homero. Quando Prokosch é apresentado à bela Camille (Brigitte Bardot), esposa do roteirista, ele convida o casal para ir a sua mansão, mas sugere que Camille vá no seu carro e que Paul vá de táxi. Apesar de Camille querer acompanhar o marido, este insiste que ela vá com o produtor. A partir de então, o casamento de Camille e Paul começa a desmoronar e o relacionamento dos dois personagens se degrada progressivamente. A parte central do filme, que focaliza a discussão do casal durante mais de 30 minutos, culmina com Camille revelando todo seu desprezo pelo marido. Segundo Godard, o filme é “a história de náufragos do mundo ocidental que um dia chegaram a uma misteriosa ilha, cujo mistério é a inexorável falta de mistério”. 
 
Paul: Depois do jantar, veremos um filme. Isso me dará ideias. Camille: Use suas próprias ideias ao invés de roubá-las dos outros.
Existe uma dimensão metalinguística explícita em O Desprezo. Na sequência de abertura do filme, os créditos são falados por um narrador off, enquanto uma câmera avança sobre os trilhos para, no final, se virar atrevidamente para o público. O Desprezo mostra paralelamente um filme em construção e um casamento em destruição. Definir esse clássico é, no entanto, uma tarefa complicada: trata-se de um filme sobre um filme? Um filme sobre o fim de um relacionamento? Um filme sobre o cinema? Um filme sobre a arte em geral? Trata-se uma sátira sobre a produção cinematográfica? O Desprezo é provavelmente tudo isso e mais um pouco.
Godard não somente exibe os bastidores de um filme, como ele brinca com as convenções cinematográficas e, por vezes, as subverte. Podemos constatar esse temperamento audacioso e experimental do cineasta na já citada sequência de abertura, mas também na célebre cena dos amantes na cama, em que ele utiliza o filtro vermelho, branco e azul (cores preponderantes em todo filme) mudando sucessivamente a cor da imagem. Podemos citar também um dos diálogos mais importantes do filme em que Camille revela já não amar Paul. Nessa cena, o diretor opta por movimentos panorâmicos laterais da câmera ao invés de utilizar o convencional campo-contracampo. 
 
Camille: Te desprezo. Isso é na verdade o que sinto por você. Por isso não te amo mais. Te desprezo. E sinto repugnância quando me toca.
A habilidade e engenhosidadede Godard podem ser constatadas no brilhante uso das cores, principalmente do vermelho, branco, azul e amarelo, e no uso do espaço. Toda a discussão de Camille e Paul no apartamento é brilhantemente coreografada em termos de utilização do cenário e de movimentação dos personagens. É nesse labirinto fechado de cômodos que se dará a degradação do relacionamento. O apartamento é extremamente importante na trama. Ele é o símbolo do casamento. Não é por acaso que o fim da relação parece coincidir com a saída de Camille do apartamento após a discussão. É já do lado de fora que a personagem pronuncia sua declaração de desprezo para o marido.
Não é somente o preciosismo de Godard que impressiona, mas também o maravilhoso roteiro escrito por ele. Muitos dos diálogos são antológicos, extremamente afiados. É impressionante também a quantidade de referências que faz o cineasta a grandes nomes da arte, esbanjando uma enorme erudição. Godard cita Dante, Bertold Brecht, Corneille, André Bazin e, é claro, Homero, para dizer só alguns. Através de seus personagens, Godard exprime discursos filosóficos, existencialistas e também discursos sobre o cinema. E o que falar da presença iluminada de Fritz Lang, que encarna praticamente a figura do sábio no filme? É igualmente genial o fato de que a fatalidade e o destino, fundamentais na epopeia de Homero, se reflitam no desfecho da trama do casal. De certa forma, O Desprezo é uma coleção de saberes, de citações e de referências eruditas. 
É igualmente interessante apontar que quatro idiomas são falados no filme (o francês, o inglês, o alemão e o italiano), o que faz do mesmo uma verdadeira Torre de Babel. É interessante que Godard ponha à prova a comunicação dos personagens através dessa multiplicidade de idiomas, já que no relacionamento o não-dito e a dificuldade de se expressar são também desafios para a comunicação do casal.
Instigante, inteligente, desafiador, O Desprezo é certamente uma das maiores obras-primas produzidas pela nouvelle vague e pelo ousado Jean-Luc Godard!
 
Paul: Eu gosto muito de CinemaScope. Fritz Lang: Oh, isso não foi feito para pessoas, só para serpentes e funerais.