domingo, 5 de junho de 2011

Abril despedaçado - 2001

Rodrigo Santoro em cena de Abril despedaçado


Abril despedaçado é o quarto longa-metragem de Walter Salles. O cineasta carioca de 55 anos tem no currículo oito longas de ficção, vários documentários, além de ter trabalhado na produção de diversos filmes nacionais. A importância de Salles para o cinema brasileiro é inegável. Terra Estrangeira (1996), Central do Brasil (1998), Abril despedaçado (2001), Linha de Passe (2008) são obras que revelam sua sensibilidade para lidar com temas relativos à realidade social do nosso país, sem ser uma exportação das mazelas brasileiras. Sendo igualmente interessante e versátil em produções internacionais, o diretor de Água negra (2005) e Diários de Motocicleta (2004), lançará, este ano, o aguardado filme On the road, baseado na aclamada obra homônima do escritor Jack Kerouac.

Abril despedaçado é uma adaptação do romance homônimo do escritor albanês Ismail Kadaré. A história do romance, que se passa, originalmente, na Albânia rural dos anos 1930, foi transposta para a realidade do sertão brasileiro do início do século XX. O ótimo roteiro é de responsabilidade de Karin Ainouz (diretor de Madame Satã - 2002) e de Sérgio Machado, com a colaboração de João Moreira Salles, Daniela Thomas e do próprio Walter Salles. O enredo do filme pode ser descrito como uma fábula sobre a intolerância. Ou, quem sabe, um tratado poético sobre a vingança ou, simplesmente, a história de dois irmãos que se vêem no centro de uma guerra familiar. 

A trama talvez possa ser resumida assim: a família Breves e a família Ferreira vivem uma guerra por posses que se arrasta por gerações. No início da trama, Inácio Breves é assassinado por um filho do clã Ferreira e o irmão de Inácio, Tonho (Rodrigo Santoro), deve vingar sua morte. As mortes sucessivas de ambos os lados sugerem um ciclo que levará ao extermínio das duas famílias. A família Breves, após o assassinato de Inácio, passa a ser composta de apenas quatro pessoas: a mãe (Rita Assemany), o pai (José Dumont), Tonho e o menino (Ravi Ramos Lacerda). Com a passagem de dois artistas circenses pelo sertão, muitas coisas começam a mudar na vida de Tonho e "menino". 

Os 30 primeiros minutos do filme são magistrais. Neles, reconstituímos toda a história da família Breves através das pistas que o filme nos dá. Também podemos perceber como se organiza a família, qual a função que cada indivíduo exerce dentro do sistema familiar e também podemos compreender a dimensão do mal que assola as vidas dessas pessoas. O trabalho de moeção de cana para a produção de rapadura é o meio de subsistência da família, um trabalho extremamente duro que se mostra cada vez menos lucrativo com a chegada da indústria. As condições de vida dos Breves são precárias e, provavelmente, inferiores à dos Ferreira. Mas não existe o lado bom e o ruim, todos são vítimas e algozes. O pai Breves é a autoridade absoluta, uma figura embrutecida e detestável, que possui valores bem rígidos. A mãe é uma mulher sem voz, submissa às leis do marido. 

Tonho e "menino" são os reais protagonistas da história. Eles não têm nada a ver com o conflito que acabam herdando de seus predecessores e, mesmo assim, tudo indica que eles serão os continuadores de um ciclo de ódio. O menino assume, por diversas vezes, o papel de contador da história, ou até mesmo, um contador de histórias, uma vez que ele inicia o filme dizendo que gostaria de contar outra história, mas que não pode porque essa (a que acompanharemos) não lhe sai da cabeça. Provavelmente, ele precise contá-la para compreender e denunciar o que vive. Este menino sem nome é a figura da imaginação, em um lugar onde qualquer tipo de evasão é punida. Os dois  protagonistas se comunicam com o olhar e tudo que ocorre em um tem eco no outro. Poucas vezes uma relação entre irmãos foi tão poeticamente retratada no cinema. Os irmãos são duas almas que dialogam, talvez uma mesma essência. 

O sertão é apresentado como um lugar onde impera outro tipo de lei. A vingança é planejada, a retaliação obedece a regras. Tudo é ritualizado e obedece ao código da honra. Existe até mesmo uma etiqueta na morte: o assassino vai ao velório da vítima para orar por sua alma e prestar condolências à família. O absurdo está instaurado na vida das pessoas e o ciclo de violência parece não ter fim. O que fazer quando uma obrigação moral leva um indivíduo em direção à morte? Somente o menino (posteriormente batizado de Pacu) tenta insurgir contra a filosofia da vingança e somente ele pode ser capaz de acabar com o ciclo de violência. 

O elenco de Abril despedaçado é primoroso. Rodrigo Santoro e Ravi Ramos Lacerda têm atuações especialmente encantadoras. Santoro constrói um personagem que se contrapõe à aridez a sua volta. Ele atua com o olhar, em uma composição delicada, contida e emocionante. Já Ravi, encanta ao encarnar uma criança que, através do humor, mostra ser consciente da realidade em que vive. De todos os personagens, ele é o mais sábio. Pacu sonha e infla em seu irmão o desejo de sonhar. Sua sabedoria e espírito crítico são revelados em frases como: "Em terra de cego, quem tem um olho só, todo mundo acha que é doido"; "A gente é que nem os boi: roda, roda e não sai do lugar". 

Se a direção de Walter Salles salienta a aridez e a vida endurecida da população rural, ela também cria momentos de puro lirismo. Os planos-detalhes das engrenagens do moinho, por exemplo, sugerem o despedaçamento do título, o desfacelamento da família. A repetição dos planos de extração do caldo de cana tem a importante função de mostrar que os indivíduos estão presos em uma realidade desumanizadora, se transformando em máquinas. O trabalho no moinho é também uma metonímia da organização familiar. A maneira com a qual o pai lida com os bois, se assemelha à maneira com que ele comanda a própria família.

Salles contrapõe a realidade indesejável do sertão a momentos de liberdade, poesia e retorno à infância. As belíssimas cenas da gangorra, em que a câmera acompanha o movimento do brinquedo, são belíssimas. E o que dizer da linda cena de Clara fazendo acrobacias em uma corda? Uma cena de uma sensualidade e erotismo únicos, que parece representar a realização amorosa de Tonho, que até então nunca tinha conhecido o amor e o sexo. 

A fotografia de Walter Carvalho impressiona tanto nos grandes planos das paisagens, quanto nos momentos claustrofóbicos da família à mesa. A tonalidade amarronzada predomina no filme, remetendo obviamente à aridez do sertão. A trilha sonora de Ed Cortês, Antonio Pinto e Beto Villares transforma o filme em uma experiência ainda mais emocionante, sublinhando perfeitamente os momentos dramáticos da trama.

Abril despedaçado é uma boa pedida para o final de semana!


Assista ao trailer:



Um comentário:

  1. Oi Leo, este filme me marcou muito. O tema, na realidade é mundial. Quando vejo a disputa entre judeus e palestinos e outras disputas que perduram por séculos,e que alguns de repente não sabem porque tem que odiar o outro, brigas que passam de geração para geração, penso que alguém tem que romper o ciclo vicioso e violento.Mas quem será?
    bjs. LENA

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