quarta-feira, 25 de julho de 2012

Clássicos da Cinemateca - Uma Rua Chamada Pecado (1951) - PARTE 1


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Disseram-me que eu tomasse um bonde chamado Desejo, depois passasse para outro chamado Cemitério...” 
A vida de Blanche Dubois é marcada pela morte, pelo desejo e pela tragédia. Allan, marido de Blanche, se suicidou ainda muito jovem, deixando-a dilacerada pela culpa e pela solidão. Após perder todas as propriedades da família e ser demitida da escola onde trabalhava, por ter se envolvido com um aluno adolescente, Blanche só tem uma opção: hospedar-se por algum tempo na casa de sua irmã, Stella, e de seu cunhado, Stanley Kowalski, em Nova Orleans, Estados Unidos. Sua estadia, no entanto, perturbará a harmonia do apaixonado casal. Por um breve momento, Blanche vê a chance de encontrar sua salvação através do amor, mais eis que seu passado maculado e o ódio de Stanley entram em seu caminho. Essa é uma maneira de resumir a trama de Uma Rua Chamada Pecado (1951). Existem outras. O filme é centrado em dois opostos. Blanche é uma representante do antigo sul americano, agrícola e rural, Stanley é um membro da classe industrial, legítimo fruto da cidade grande. Ela representa um mundo que está desaparecendo, ele a modernidade. Ela depende da bondade de estranhos, ele faz a sua própria sorte. Ela é presa, ele é predador. Ela é frágil, ele a destrói. Pauline Kael, crítica americana, afirmou que, em Uma Rua Chamada Pecado, encontramos duas das maiores atuações do cinema. Ela se referia a Vivien Leigh e Marlon Brando, intérpretes de Blanche e Stanley.
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"Não quero realismo. Eu quero magia.”
O título nacional de Uma Rua Chamada Pecado é a versão escolhida pelos distribuidores brasileiros para Um Bonde Chamado Desejo (A Streetcar Named Desire), título original do filme e da peça que o inspirou. A palavra “pecado” faz, obviamente, referência à moral cristã, às ideias de transgressão e culpa.  No entanto, a peça de Tennessee Williams e o filme de Elia Kazan não focalizam o pecado e, sim, o “brutal desejo”.  A substituição dos nomes no Brasil exemplifica muito bem o tipo de dificuldades que o longa-metragem impôs à censura americana. O script do filme teve que sofrer diversas alterações. Duas delas extremamente importantes: no cinema, a homossexualidade do marido de Blanche Dubois foi substituída por uma fraqueza de caráter, uma alma poética e uma dificuldade de enfrentar a vida real. A atriz britânica Vivien Leigh chegou a apontar o absurdo da mudança quando leu, pela primeira vez, a cena modificada, dizendo: “Eu devo culpá-lo por ele ser um poeta?” Na peça, Blanche surpreendia seu marido na cama com outro homem, o que o levou, humilhado e envergonhado, a se suicidar. Outra alteração drástica na transposição da peça para o cinema é o final da história. Na peça, Stella não se separa de Stanley Kowalski, escolhendo não acreditar na acusação de estupro feita por sua irmã, Blanche. No filme, ela jura nunca mais voltar para o marido. O final hollywoodiano é, portanto, moralizador: o mal deve ser punido.
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“Sim, eu tive muitos encontros com estranhos.”
O infame Código Hays, que regulamentava a censura nas produções norte-americanas, esteve em vigor de 1930 até 1968, se enfraquecendo após os anos 50. Alguns produtores, como Darryl F. Zanuck, chegaram a desistir da realização de Uma Rua Chamada Pecado, pois já anteviam graves problemas com a censura.  O poderoso Jack Warner, no entanto, assumiu a responsabilidade de fazer o filme virar realidade a despeito de seu conteúdo “desafiador”. Tudo relativo ao script deveria ser submetido a um comitê que analisava o que era aceitável ou não. Kazan tentou maquiar ao máximo alguns aspectos do roteiro submetido, tentando burlar a censura. Ele sabia que se determinados cortes fossem feitos, a história perderia completamente a sua essência. Quando, finalmente, todas as mudanças no script foram negociadas, o filme rodado e aprovado pelo Código Hays, um novo problema surgiu à tona.
A famosa cena da escada.
A Legião da Decência, criada em 1933 por fiéis católicos, ameaçou dar o status “C” (de “condenado”) ao filme, ou seja, a obra seria desaconselhada aos católicos e, provavelmente, muitos cinemas se recusariam sequer a passá-lo. Muito dinheiro já havia sido investido no filme e Jack Warner teve que se comprometer a fazer alterações de última hora. Tais mudanças ocorreram sem o consentimento e a supervisão de Elia Kazan e consistiam basicamente na decupagem de algumas cenas. Muitos momentos considerados provocativos ou inaceitáveis foram retirados. A famosa cena na escada sofreu muitas alterações: Alex North, compositor do filme, teve que criar um novo tema musical, substituindo sua partitura original, considerada muito sensual e “carnal”. Além disso, a cena foi montada de maneira diferente. Os closes sobre o rosto de Stella (Kim Hunter) foram retirados, pois eles revelavam sua expressão tomada pelo desejo. Muitos outros cortes dessa natureza foram feitos e o filme pôde estrear nos cinemas com o status “B” (objecionável em partes). Posteriormente, foram achados os negativos originais do filme e, hoje, temos a sorte de poder assistir ao clássico da maneira como ele foi concebido por Elia Kazan, com cerca de quatro minutos a mais de duração do que a versão lançada nos cinemas em 1951.
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"E eu sou o rei aqui dentro, é bom que não se esqueçam disso.
Nem a interferência da censura conseguiu retirar tudo que Uma Rua Chamada Pecado tinha de provocativo, audacioso e inovador. Na época de seu lançamento, o filme representou um verdadeiro choque. Primeiramente, por contar a história de personagens ambíguos, indivíduos movidos pela paixão e pela libido, escravos de pulsões irresistíveis e contraditórias. O próprio conteúdo da trama era polêmico, uma vez que fazia menção a alguns assuntos tabus, como o estupro e a pedofilia. Por fim, o filme chocou ao apresentar um Marlon Brando extremamente sensual e viril (o corpo masculino jamais havia sido mostrado daquela maneira). 
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“Pensando bem, talvez não fosse mau... interferir com você...” 
Mesmo sendo considerado, por muitos, escandaloso, o filme foi bem recebido pela crítica. Vivien Leigh levou a Volpi Cup de Melhor Atriz no Festival de Veneza e também o BAFTA. O filme ainda foi indicado a três Globos de Ouro e lembrado por outras associações de críticos dos Estados Unidos. Uma Rua Chamada Pecado foi indicado a 12 Oscars, tendo levado quatro estatuetas: Melhor Atriz (Vivien Leigh), Melhor Ator Coadjuvante (Karl Malden), Melhor Atriz Coadjuvante (Kim Hunter) e Melhor Direção de Arte em Preto e Branco (Richard Day e George James Hopkins). Até hoje, este é, ao lado de Rede de Intrigas (1976), o único filme premiado pela Academia em três categorias de atuação. Por justiça, deveria ter sido premiado nas quatro, uma vez que o indicado Marlon Brando, que ofereceu uma atuação revolucionária, acabou perdendo para Humphrey Bogart, premiado muito mais pela carreira do que por sua performance em Uma Aventura na África (1951). 
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“O charme de uma mulher é 50% ilusão.”
Tennessee Williams (1911-1983), autor da peça Uma Rua Chamada Pecado, é um dos dramaturgos norte-americanos mais importantes e influentes do século 20. Ele é superado apenas por William Shakespeare, em termos de adaptação para o cinema. Outras peças famosas do autor, transpostas para as telonas, são: Gata em Teto de Zinco Quente (1958), De Repente, no Último Verão (1959), A Rosa Tatuada (1955) e Doce Pássaro da Juventude (1962).Além de Elia Kazan, outros grandes diretores adaptaram peças de Williams para o cinema. Podemos citar: Sidney Pollack, Sidney Lumet, Joseph L. Mankiewicz e Richard Brooks.  Assumidamente homossexual, em uma época em que poucos o eram, Williams tinha preferência por assuntos considerados tabus. Em suas peças, ele abordava a sexualidade, a loucura, o alcoolismo, a morte, a dificuldade de comunicação etc. Seus personagens são seres perturbados, imperfeitos, desajustados, marcados pelo trauma, pela dor e em busca da redenção. 
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“Você não é limpa o bastante para entrar na casa da minha mãe.”
Tennessee Williams e Elia Kazan nutriram uma longa amizade, marcada pelo respeito e pela admiração mútua. Kazan (1909-2003) dirigiu diversas peças de Williams no teatro, incluindoUma Rua Chamada Pecado, que estreou na Broadway em 1947. O diretor, grego de nascimento, não queria, de maneira alguma, se incumbir da adaptação fílmica. Ele acreditava que já havia alcançado tudo o que podia com a peça no teatro. Foi através da insistência de Williams que ele aceitou dirigir o longa-metragem. O cineasta tem um recorde bastante curioso: ao longo de sua carreira, ele dirigiu 21 atuações indicadas ao Oscar! 
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“Hey, Stella!”
O roteiro de Uma Rua Chamada Pecado ficou sob a responsabilidade do próprio Tennessee Williams e de Oscar Saul. Com exceção das mudanças exigidas pela censura, muito pouco do texto original foi alterado. Um dos aspectos mais elogiados e lembrados do filme é a sua trilha sonora, um dos elementos responsáveis por conferir uma aura de sensualidade à trama. Para a música do filme, Elia Kazan apostou em Alex North, um compositor pouco experiente até então. North compôs uma trilha sonora fortemente influenciada pelo jazz, uma inovação para a época. A trilha de North para Uma Rua Chamada Pecado é considerada uma das mais bonitas e influentes de todos os tempos. 
Ouça um trecho da trilha composta por Alex North..
Em sua autobiografia, Elia Kazan: Uma Vida, o diretor fala sobre sua experiência em dirigir a peça e o filme.  A leitura dessas passagens é interessante, pois revela algumas das reflexões de Kazan sobre sua maneira de trabalhar e suas dificuldades e desafios, tanto nos palcos, como, posteriormente, no cinema. Na próxima edição de nossa coluna, abordaremos algumas dessas passagens. Falaremos também sobre os bastidores de filmagem de Uma Rua Chamada Pecado, sobre a transposição da peça para o cinema, sobre a importância dos dois atores principais, sobre a difícil relação entre Vivien Leigh e Elia Kazan e sobre o trabalho do diretor. Não perca! 
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“Você está falando sobre desejo, um brutal desejo...”

Outras frases de Uma Rua Chamada Pecado:
- "Sempre dependi da bondade de estranhos”
- “E nunca mais houve outra luz em minha vida que fosse mais forte que esta pobre luz de vela. . .”
- “Às vezes... Deus surge. . . tão depressa.”
- “Não posso suportar a luz crua de uma lâmpada, assim como não posso suportar uma observação rude ou uma ação vulgar.”
- “Uma linha pode ser direita, uma rua. Mas o coração de um ser humano?”
- “Uma cega conduzindo uma cega...”
- “Flores para los muertos. Flores. Flores”.
- “Há tanta... tanta confusão no mundo...”
TEXTO DE MINHA AUTORIA, PUBLICADO ORIGINALMENTE NO DIA 14/03/2012 NA COLUNA CINEMATECA DO SITE CINEMA EM CENA. 

2 comentários:

  1. Obrigado, Leonardo, por compartilhar essas informações e a sua visão muito acertada sobre o filme. Sou professor de Teatro e vou divulgar seu texto para os alunos. Uso sempre o filme para falar sobre vários assuntos, e o seu texto vai me ajudar bastante!
    Grande abraço,
    Eduardo

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  2. Muito obrigado, Eduardo!
    Fico feliz que tenha apreciado o texto. Espero que continue visitando o Clube do Filme.
    Grande Abraço,

    Leonardo.

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