quinta-feira, 6 de outubro de 2011

A mulher do tenente francês (1981) e a Cena do Dia


Karel Reisz (1926-2002) nasceu na Tchecoslováquia, mas foi na Inglaterra que ele construiu sua vida e carreira. O diretor teve seu auge na década de 60, quando foi considerado um dos mais importantes cineastas britânicos. Muitos de seus filmes contêm forte apelo social e tom reivindicativo. Suas obras mais conhecidas são Tudo começou no sábado (1960), Deliciosas loucuras de amor (1966) e Isadora (1968), os dois últimos estrelados pela atriz Vanessa Redgrave. Em 1981, ele dirigiu a adaptação do excelente romance de John Fowles, A mulher do tenente francês. O filme completa, portanto, 30 anos e é o homenageado da semana no Clube do Filme

O romance conta a história de Sarah, uma mulher que vive na pequena cidade de Lyme, no sudoeste da Inglaterra, e que é vista como uma figura peculiar na cidade. Chamada de "Tragédia", a moça  teve um caso com um tenente francês casado e depois fora abandonada por ele. Desde então, ela tem que lidar com sua melancolia e com o preconceito da população. Charles, um arqueólogo oriundo da aristocracia, recente na cidade e noivo de Ernestine, a filha de um rico burguês, começa a se interessar por Sarah. 

A mulher do tenente francês veio logo após Meryl Streep ganhar seu primeiro Oscar (de coadjuvante, pelo filme Kramer VS. Kramer) e foi responsável por sua segunda indicação ao prêmio de Melhor Atriz. Estrelado também por Jeremy Irons, o filme nos apresenta dois fios narrativos. O primeiro corresponde a história de Sarah, que se passa no século XVI, já o segundo nos mostra o processo de filmagem dessa história, já no mundo contemporâneo. Em suma, trata-se de um filme dentro de um filme. O ótimo roteiro de Harold Pinter (também renomado dramaturgo) decide, portanto sobrepor duas tramas separadas pelo tempo, mas intimamente ligadas uma a outra. Ao contrário do que ocorre em Amnésia (2000), a fotografia e a montagem não interferem para construir uma diferenciação estética entre as duas tramas. Reisz opta, sobretudo, pela fluidez, podemos até mesmo afirmar que existe uma contiguidade lógica na constante transição entre tramas. 

A mulher do tenente francês narra não só um, mas vários casos de amor, através de quatro casais diferentes. Temos Sarah e o tenente francês; Charles e Ernestine; Sarah e Charles e Anna e Mike (os atores que interpretam Sarah e Charles). Assim, vemos um interessante fenômeno especular, já que a história do primeiro casal acaba se refletindo na história dos outros casais. Sarah é uma personagem enigmática e de comportamento estranho, que incorpora em si o apelido que os moradores da cidade lhe dão: "tragédia". Ela é interpretada brilhantemente por Meryl Streep, que também interpreta, obviamente, Anna.

O filme também se destaca pela forma com a qual trata o estereótipo das histórias de amor. Reisz adota um supra-romantismo ao lidar com a trama “fictícia”  do longa (a história de Sarah e Charles). Assim, o filme pode parecer piegas e exagerado em algumas cenas, justamente pelo fato de Reisz brincar com as convenções de um estilo. O uso do estereótipo romântico pode ser visto, por exemplo, na cena em que Charles pede Ernestina em casamento. 

Ilustraremos a análise do filme com uma sequência que parece expor bem a dinâmica da obra e que é a nossa Cena do Dia (ou melhor, “cenas do dia”). Ela começa com Charles observando Sarah, no meio da mata. Ele a observa com uma curiosidade quase científica e começa a segui-la. Eles estão em uma mata, em um ambiente bucólico e onírico. Finalmente ele a encontra deitada à beira de uma árvore, em uma posição que muito lembra a estética do romantismo e a pintura pré-rafaelita (a influência da pintura é notável no filme). Novamente, a personagem encontra-se inicialmente com o rosto virado para o mar, algo que se repete por diversas vezes durante o longa e que provavelmente indica sua espera pelo retorno do amado, mais um motivo tipicamente romântico. Charles interrompe esse momento íntimo e, embaraçado, recua.

Logo depois, segue-se uma breve trama paralela envolvendo os criados, que funciona como um retardamento da intriga principal, elevando, portanto, o suspense. O retorno à intriga de Sarah se dá com passagem de Charles por um curral e pelo depoimento ácido do camponês sobre a moralidade da protagonista, ele a chama de prostituta. Novamente a intriga dos criados interrompe a investigação de Charles, retardando a conclusão da sequência principal. Dessa vez, no entanto, um elemento é adicionado, Ernestine, que serve para enfatizar o fato de que um triângulo amoroso está sendo estabelecido. 

Segue-se mais um encontro de Charles e Sarah. É a primeira vez que eles se falam. Ela aparece novamente arredia. Ela se afasta, olha para trás e sobe ligeiramente o vestido, mostrando sua anágua. Corte simples, vemo-nos já diante de outra trama. Trata-se do ensaio dos atores. O elemento de união desta cena com a precedente parece ser o vestido, já que Anna está segurando um vestido da mesma cor da anágua de Sarah. Anna não entra de vez na personagem, ela só consegue concentrar-se na repetição da cena, quando sua fisionomia se transforma completamente. A queda de Anna no ensaio é terminada por Sarah já na outra trama, em uma perfeita transição entre as duas histórias.  

Através dessa sequência, podemos observar o interessante trabalho de montagem do longa, cuja estrutura, extremamente bem elaborada, acrescenta ainda mais lirismo e poeticidade à história (ou histórias) que narra.


Clique aqui e assista à sequência




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