sábado, 6 de agosto de 2011

O diário de uma camareira - 1964

Título original: Le Journal d'une Femme de Chambre

Lançamento: 1964 
País: França, Itália

Direção: Luis Buñuel

Atores: Jeanne Moreau, Georges Géret, Daniel Ivernel, Françoise Lugagne.

Duração: 93 min

Gênero: Drama
Jeanne Moreau em cena de Diário de uma camareira

Hoje abordaremos a adaptação cinematográfica de um importante romance francês. Antes, porém, de chegarmos à obra em questão é importante falarmos um pouco de dois grandes artistas que muito fizeram pela arte no século XX e que, apesar de separados pelo tempo, guardam certas semelhanças. Octave Mirbeau nasceu em 1848, foi romancista, jornalista, crítico de arte, com uma grande verve anarquista. Original, subversivo, engajado politicamente, Mirbeau e sua pena ferina não poupavam a sociedade burguesa e as instituições que a compunham. Luis Buñuel, cineasta espanhol, nasceu no ano em que foi publicada a versão definitiva de Diário de uma camareira, 1900, um dos romances mais famosos de Mirbeau. Grande amigo de Salvador Dalí, sua obra tem forte influência surrealista. Controverso e polêmico, o diretor escandalizava o mundo com suas obras que, em sua maioria, veiculavam uma forte crítica aos valores contemporâneos e à hipocrisia reinante da sociedade em que vivia.  

O diário de uma camareira é um romance francês publicado primeiramente em forma de folhetim (entre 1981 e 1982) e, posteriormente, em uma segunda versão revisada pelo autor, em 1900. O romance copia a forma de um diário, estrutura que permite grande flexibilidade narrativa: digressões, reflexões e a narração de fatos presentes e passados. A narradora e protagonista da(s) história(s) é uma "reles" camareira chamada Célestine. A jovem mulher lança um olhar ácido sobre a sociedade em que vive, sobre seus semelhantes empregados, sobre a burguesia e até mesmo sobre o clero. Nada escapa à sua inteligência e ao seu espírito crítico e mordaz. Célestine pinta um retrato deliciosamente malicioso de seu próprio tempo. Nele, os vícios mais obscuros estão presentes. 

Célestine é uma personagem única na literatura francesa. Sua posição social não significa um rebaixamento ou inferioridade de espírito. Mirbeau, ao dar voz a uma empregada, lança seu olhar para uma classe que ocupa um espaço social pouco definido. Como a própria personagem afirma, uma camareira é um ser inferior à burguesia, mas que não ocupa o mesmo lugar que o povo, a massa pobre. A lucidez da personagem com relação à sua própria função na cadeia alimentar da sociedade é impressionante. Atrevida, observadora, irônica e inteligente, Célestine faz do leitor o seu confidente e seu cúmplice. E é com curiosidade e lascívia que nos deleitamos com suas muitas histórias. 

A adaptação fílmica de  Luis Buñuel comporta grandes diferenças em relação ao romance, a começar pelo próprio foco da história. O roteiro, escrito também por Buñuel, com o auxílio de Jean-Claude Carrière, opta por focalizar apenas a trama principal do livro, eliminando praticamente todas as fantásticas histórias e anedotas paralelas presentes no livro. Assim, temos acesso apenas ao último emprego de Célestine como camareira, na casa dos Monteils (Lanlaires, no livro). O corte não é surpreendente, visto que o material do romance é rico o suficiente para a criação de uma minissérie (fica a dica para as emissoras de TV). Outra importante diferença é a ausência da deliciosa narração de Célestine, que poderia funcionar muito bem através da voz off. Sem dúvida alguma, o filme perde com as duas alterações, a primeira sendo compreensível e a segunda passível de crítica, uma vez que o olhar da protagonista sobre os fatos é o grande responsável pelo charme da história. Além disso, o título da obra não é Diário de uma camareira? Pois bem, no filme não existe tal diário.

Se Buñuel toma liberdades em sua adaptação, ele também modifica um pouco o tom de sua obra em relação à original. Por mais incrível que se possa imaginar, o livro de Mirbeau consegue ser mais subversivo, ousado, picante e aterrador do que a produção lançada 64 anos depois. Existe certa sobriedade na direção de Buñuel, que contrasta com a ousadia da história contada. A câmera parece veicular um olhar objetivo e plácido sobre os vícios que retrata. A bela fotografia em preto em branco ainda adiciona um clima de melancolia à história narrada. Era de se esperar que a combinação de um diretor subversivo com uma obra subversiva fosse explosiva, mas o diretor dos ousados Viridiana (1961), O anjo exterminador (1962), O cão andaluz (1929) e O discreto charme da burguesia (1972) realiza um de seus filmes mais lineares e convencionais. 

Diário de uma camareira conta com um ótimo elenco. Merecem elogios Georges Géret, Michel Piccoli, Jean Ozenne e Daniel Ivernel. O filme de 1964 traz na pele de Célestine uma das maiores atrizes francesas de todos os tempos, Jeanne Moreau. A atriz, que já encarnou várias mulheres sensuais no cinema, não consegue, no entanto, dar a Célestine o atrevimento que a mesma possui no romance. Apesar de caprichar nos olhares dissimulados, a personagem é boicotada pelo próprio roteiro que tira praticamente tudo o que há de mais saboroso na personalidade da camareira. Apesar das críticas que podem ser feitas à adaptação, o filme está longe de ser ruim, guardando, ainda que de forma atenuada, parte de seu furor denunciativo. O longa ainda mantém grande coerência temática com relação à filmografia do diretor espanhol, pois manifesta grande crítica aos hábitos e costumes da burguesia.

Diário de uma camareira é um filme pouco comentado da filmografia de Buñuel, muitas vezes considerado menor. Apesar de não estar à altura de seus melhores trabalhos, o longa apresenta uma direção extremamente sofisticada e elegante e torna-se passagem obrigatória para fãs e estudiosos do diretor. Mesmo se distanciando do surrealismo, marca do cineasta, a produção contém momentos em que a genialidade de Buñuel pode ser apreciada em seu melhor, como a cena de um assassinato no bosque e outra que retrata o crescente fascismo na Europa. Diário de uma camareira, o romance, por sua vez, é uma obra singular da literatura francesa que, com uma escrita venenosa e sedutora, revela os mais secretos vícios da alta sociedade francesa do início do século XX . 

Assista ao trailer:





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