sábado, 7 de maio de 2011

Nascido para matar - 1987

R. Lee Remey, como Sargento Hartman.


Stanley Kubrick é um dos grandes gênios da história do cinema. Perfeccionista e controlador ao extremo, o diretor gostava de ter sob seu comando todos os aspectos de suas produções. Sua filosofia de trabalho, no entanto, deu muito certo. Ele é responsável por, no mínimo, 5 obras primas: Glória feita de sangue (1957), Laranja mecânica (1971), Dr. Fantástico (1964), 2001 - Uma odiséia no espaço (1968) e O iluminado (1980). Em seu currículo, ainda constam outros grandes filmes como Spartacus (1960), Barry Lindon (1975), De olhos bem fechados (1999) e este Nascido para matar (1987). É interessante observar que este diretor tão brilhante nunca tenha sido unanimidade. Ele foi alvo de duras críticas: pela violência em Laranja Mecânica, pelo erotismo em Lolita, pelo humor negro em Dr. Fantástico, entre outras. Na filmografia de Kubrick, o tema da guerra ocupa um lugar privilegiado. Glória feita de sangue se passa durante a Primeira Guerra Mundial, Dr. Fantástico, durante a Segunda Guerra e Nascido para matar, durante a Guerra do Vietnã.  

Fortemente inserida no contexto da Guerra Fria, a Guerra do Vietnam opunha basicamente o comunismo e o capitalismo. Ela começou como um conflito entre as duas partes do país: o norte comunista e o sul nacionalista. A intervenção massiva dos Estados Unidos, fez com que a guerra tomasse dimensões catastróficas, causando grandes perdas humanas e uma grande insatisfação do povo estadunidense.  A guerra se prolongou de 1959 a 1975 e representou a primeira derrota militar dos Estados Unidos. Nascido para matar, baseado no romance de Gustav Hasford, foi ofuscado, na época do seu lançamento, pelo grande sucesso de Platoon, de Oliver Stone. Platoon também tem como tema a guerra do Vietnam e ganhou 4 Oscars, inclusive de Melhor Filme e de Melhor Diretor. Apesar de Platoon ser mais conhecido, ainda hoje, muitos especialistas consideram Nascido para matar melhor que o filme de Stone. No entanto, há uma diferença muito grande no tom dos dois filmes. Se o filme de Stone se concentra na ação e no drama, o filme de Kubrick dispõe de um humor e uma crítica absolutamente ácidos.

Nascido para matar (Full Metal Jacket em inglês, mome de uma munição) conta a história de um grupo de rapazes que, após se alistarem no exército, passam por um duro treinamento e são enviados para o Vietnam. O filme pode ser dividido em duas partes: os primeiros 45 minutos mostram o treinamento/tortura dos soldados e o restante da produção mostra a ação no Vietnam. Sem créditos iniciais, o filme já nos lança , em sua primeira cena, à raspagem dos cabelos dos jovens que acompanharemos na continuação do filme. Esta cena é acompanhada de uma música country cujo refrão diz "Adeus querida, olá Vietnam!". Kubrick joga com os estereótipos, com a ironia e o humor o tempo todo. Ao mesmo tempo em que a cena de abertura é agressiva, também é patética.

A cena que se segue é antológica. Vemos a apresentação do sargento de artilharia Hartman, responsável pelo treinamento dos recrutas. R. Lee Remey, o ator que interpreta o personagem, não era a opção inicial do diretor para o papel. Na verdade, ele foi contratado como um conselheiro da produção, devido a sua experiência na guerra. No entanto, Kubrick ficou impressionado com o ator que personificava como ninguém o ameaçador sargento. Dizem que o próprio Remey pediu o papel e, ao ouvir um não de Kubrick, pediu que o diretor mudasse a postura ao falar com ele e Kubrick instintivamente obedeceu ao comando, o que fez com que Remey ganhasse o papel. Ao assistir o filme, é impossível pensar em alguém mais adequado para interpretar o sargento. Apesar de ameaçador e desprezível,  Hartman tem tiradas hilárias. Remey, na cena de apresentação citada anteriormente, improvisou grande parte das falas, algo quase impensável em um filme de Kubrick. Leia algumas delas:

"Sou severo, mas justo. Não há discriminação racial aqui. Não desprezo crioulos, judeus, carcamanos ou cucarachas. Aqui são todos igualmente inúteis."

"Admiro sua honestidade. Gosto de você, pode até comer a minha irmã."

- Qual a sua altura, soldado?
- 1, 75 m, senhor!
- Não sabiam que empilhavam merda tão alto. 

"Você é tão feio que parece uma obra-prima de arte moderna."

E a mais famosa: 

"Aposto que você é do tipo que come o rabo de alguém e nem tem a decência de oferecer o próprio." 

Essas são apenas algumas de suas pérolas. E detalhe: o ator raramente pisca. Outra grande atração da primeira parte do filme é o ator Vincent D'Onofrio, que interpreta Pyle, um soldado que não consegue se adaptar a rotina do treinamento e às exigências do sargento Hartman. Pyle é o único dos recrutas que parece achar graça das tiradas de Hartman na cena de apresentação, ele mal consegue segurar o riso. De certa forma, nos identificamos a ele, porque também acabamos achando graça dos absurdos ditos pelo sargento. No entanto, ele é severamente punido e se torna o alvo preferido do sargento. O ator, em sua fantástica interpretação (o olhar dele é de arrepiar), nos mostra Pyle como um sujeito, inicialmente inofensivo e bobo, talvez com algum tipo de distúrbio psicológico, mas que, por causa das diversas agressões e humilhações, se desumaniza, se transformando em um tipo de monstro/máquina. Kubrick ilustra muito bem a mecanização dos soldados através dos comportamentos repetitivos dos mesmos, dos exercícios, dos hinos decorados. A repetição também está presente no estilo do filme: muitas figuras narrativas são repetidas constantemente, como o travelling e o fondu enchainé.

Em Nascido para matar, o trágico e o cômico são duas faces da mesma moeda. O humor está presente nos hinos dos soldados, nas tiradas de Hartman e do protagonista, o Soldado Joker (em português piadista). O termo Joker joga também com outro significado, a carta de baralho, o curinga, que, em certos jogos, muda de valor conforme a combinação de cartas que o jogador tem em mãos. O soldado Joker é realmente o curinga no filme, pois ele se revela indecifrável, suas atitudes parecem se contradizerem. Ele é corajoso, mas servil a Hartman; ele auxilia Pyle, mas depois ajuda a espancá-lo; ele se alista para ser jornalista de guerra, mas quer ir para o campo combater; por fim ele tem um broche que simboliza paz e ,em seu capacete, está escrito “nascido para matar”. Joker (interpretado por Matthew Modine), aparentemente inteligente e sagaz, mostra ser, no fundo, um rapaz perdido, representando talvez toda uma geração. 

A segunda parte do filme focaliza o cotidiano dos soldados no Vietnam. O absurdo da guerra é mostrado de perto. Kubrick revela que os soldados não têm a mínima consciência do que estão fazendo. Eles esbravejam contra o comunismo, mas ao que parece, não fazem idéia do motivo que os levam a matar e a destruir. Dessa forma, Kubrick mostra a burrice da guerra. Adotando em alguns momentos o tom de documentário, o filme alterna as cenas de ação, com momentos de "reflexão" dos próprios soldados.

Eficiente em todos os aspectos, Nascido para matar, é um dos filmes de guerra mais inteligentes e interessantes de todos os tempos, uma grande e ácida crítica contra a indústria bélica.

Trailer do filme:

Um comentário:

  1. Olá, Leonardo!
    Acabei de assistir Nascido para Matar. Como todo filme de Kubrick, é sempre uma experiência cinematográfica, com personagens incríveis...
    O personagem de Matthew Modine simplesmente é encantador! Essa personalidade dual dele, faz com que o entendamos melhor, e nos sintamos mais próximo dele, acredito.. no começo do filme, sentimos pena de Pyle - entendemos e apreciamos que Joker queira ajudá-lo com paciência. Quando Pyle, apesar de tudo, continua a fazer coisas erradas, não dá pra criticar a atitude de Joker ao bater nele.. As pessoas sentem carinho e raiva ao mesmo tempo pelas outras, e esses sentimentos mudam com rapidez assustadora. Adoro que Kubrick consiga entender e colocar isso nos seus filmes..
    Apesar de o filme ser realmente muito bom, a guerra do Vietnã, pra mim, nunca será tão bem retratada como em Apocalypse Now. Sei que são duas visões diferentes e que compará-los talvez seja um erro, mas a dor, a estupidez, a irracionalidade, o absurdo daquela guerra, Copola conseguiu exprimir em cada frame do filme de forma única; por mais que um filme seja excelente no tema, como Full Metal Jacket, é difícil conseguir a intensidade de Apocalypse Now (mas isso, claro, é só a opinião de alguém que tem o cinema apenas como hobby..)

    Curti muito seu texto sobre o filme!
    Parabéns!

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