"A infância é como uma faca cravada na garganta."
"Às vezes, é melhor não saber [a verdade]."
"A morte nunca é o fim de uma história. Ainda existem os vestígios."
Nawal Marwan, interpretada por Lubna Azabal |
Incêndios é uma produção canadense indicada ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2010. Ele é a adaptação da peça homônima do dramaturgo (e também diretor) libanês Wadji Mouawad, que escreve, no entanto, em francês e vive no Canadá. Antes de conhecer o filme, tive a oportunidade de fazer um estudo sobre uma das cenas da peça em um trabalho universitário (curiosamente a cena estudada, não foi transposta para o filme). Infelizmente, não tive ainda a oportunidade de ler a peça por completo. Não poderei falar, portanto, do trabalho de adaptação da obra, algo que me sinto imensamente impelido a fazer no futuro. Posso dizer, no entanto, que Mouawad é um dos melhores autores francófonos contemporâneos e sua linguagem é extremamente rica, com uma grande influência da linguagem cinematográfica. Um querido professor francês, afirmou que o texto da peça é um dos melhores textos teatrais que ele já leu.
Incêndios, o filme, parece fazer jus ao grande texto que adapta. Ele é tão rico e existe tanto o que falar desta obra, que é dificil saber por onde começar. Sem dúvida, devido à poderosa obra original, temos um dos filmes mais emocionantes dos últimos anos. Incêndios conta história de uma mulher, Nawal Marwan, de 60 anos, que morre e deixa a seus filhos (um casal de gêmeos), junto com seu testamento, duas cartas para serem entregues para o pai e o irmão do casal. Simon, o filho, deve entregar a carta a seu irmão e Jeanne, a filha, deve entregar a carta a o seu pai. Apenas após o cumprimento dessa tarefa, Nawal poderá ter um sepultamento normal. A missão se revela absurda e quase impossível uma vez que Simon e Jeanne acreditavam que seu pai estava morto e desconheciam completamente a existência de um terceiro irmão. Nawal, cristã e originária do Oriente Médio, faz, através dessa missão, com que seus filhos descubram sua própria origem.
Incêndios conta a história de uma escavação do passado, um processo doloroso de descoberta de uma origem. Tanto a peça, como o filme carregam uma aura mítica, própria das tragédias gregas. A intolerância religiosa é o que produz a trama e a guerra civil entre cristãos e muçulmanos no Oriente Médio é mais do que pano de fundo para história, é, junto com o destino, uma das forças motrizes da história. Incêndios, no entanto, dificilmente possa ser rotulado como um filme panfletário antiguerra. A crítica, que existe, é construída de maneira bem orgânica ao enredo e o espectador não pode deixar de sentir o horror de uma guerra em nome da religião.
O filme mostra uma viagem que parece ser essencial para a maturidade e para o autoconhecimento de Simon e Jeanne. O rapaz tem um comportamento que o aproxima a um adolescente imaturo e, desde o primeiro instante, recusa sua tarefa; só o vemos reaparecer no último terço do filme. Jeanne, no entanto, abraça sua missão e viaja ao Oriente Médio em busca da verdade. Acompanhamos durante mais da metade do filme a duas buscas paralelas: a busca de Jeanne por seu pai e por seu irmão e, em outro tempo, a busca de Nawal por seu primeiro filho dado para adoção por ser fruto de sua relação com um refugiado mulçumano. Duas mulheres, atravessando os mesmos lugares, em busca de um parente perdido. O jogo passado/presente, também presente na peça, é extremamente bem realizado por evocar a relação íntima dessas duas jornadas: como se uma fosse a "revivência" da outra. Temos, durante todo o filme, a sensação de estarmos diante de um trauma, algo enterrado na memória e que vai ser trazido a tona.
Uma das qualidades da produção está na força de seu elenco: os atores estão excelentes desde os protagonistas até as participações-relâmpago. Lubna Azabal (intérprete de Nawal), no entanto, é o grande destaque do filme. Sua performance é tão forte quanto sua personagem. A atriz consegue exprimir, através do olhar, uma dor que não pode ser expressa por palavras. A personagem fala pouco e, quando fala, podemos sentir sua voz entrecortada pelo sofrimento. Nawal, poeticamente chamada como "a mulher que canta", é uma heroína trágica inesquecível.
Incêndios é apenas o quarto longa-metragem de Denis Villeneuve, diretor que já é, no entanto, bastante premiado. Ele conduz muito bem a experiência cinematográfica que é este filme de 2010. Não me sai da cabeça, por exemplo, a primeira cena em que Nihad, uma criança, olha diretamente para a câmera e, para nós espectadores, com uma raiva que, ao mesmo tempo, parece ser um pedido de socorro. Através de lindos planos gerais, Villeneuve também nos mostra as paisagens do Oriente Médio, revelando o contraste que existe entre a bela natureza árida e o horror que se reproduz naquele lugar. Villeneuve também escolhe sabiamente o momento em que a violência deve ser explicitada e o momento em que ela deve ser apenas sugerida.
A única coisa que me incomodou foi a presença de títulos que dividem o filme, mais ou menos, em capítulos. Esse recurso distancia o espectador da história, uma vez que interfere no fluxo visual. A meu ver a titulação deve ter uma função bem definida na narrativa, senão é completamente desnecessária. Em Incêndios, ela soa mais como um didatismo desnecessário.
Deve-se elogiar a bela fotografia de André Turpin e a trilha sonora de Grégoire Hetzel que conta ainda com duas ótimas músicas do Radiohead.
O texto a seguir vai revelar detalhes importantes da trama do filme, se preferir, não leia antes de assisti-lo.
Incêndios é uma reatualização do mito de Édipo, contado pela tragédia grega de Sófocles, Édipo Rei. Na história, Édipo mata o seu pai e casa-se com sua mãe, Jocasta. Em Incêndios, a revelação da identidade do pai e do irmão ocorre em dois momentos. No primeiro momento, temos uma bela cena em que, já sabendo da verdade, Simon pergunta para Jeanne: "Um mais um é sempre dois. Certo?". Ele reitera a pergunta por diversas vezes, até que Jeanne compreende o significado. As duas pessoas que eles estavam procurando são de fato a mesma: o irmão e o pai são um só indivíduo. Simon e Jeanne devem enfrentar o fato de serem fruto de um incesto. A reação da personagem é fantástica (numa ótima interpretação de Mélissa Désormeaux-Poulin). Apenas em um segundo momento a verdade pode ser verbalizada, um processo essencial para a superação da dor.
O filme levanta a questão se vale a pena saber a verdade, mesmo ela sendo terrível. Ao final, ele parece responder que sim.
Assista ao trailer:
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