quinta-feira, 18 de abril de 2013

Clássicos da Cinemateca - Os Sapatinhos Vermelhos (1948)


BORIS : Por que você quer dançar?  
VICTORIA : Por que você quer viver? 
BORIS: Eu não sei exatamente o porquê… mas EU PRECISO. 
VICTORIA: Essa é a minha resposta também.


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“Nem o melhor mágico do mundo pode tirar um coelho da cartola se já não existir um coelho na cartola.”
Os Sapatinhos Vermelhos é certamente a obra mais famosa da dupla Michael Powell e Emeric Pressburger, conhecidos como The Archers (os Arqueiros). Ainda que o musical de 1948 seja uma obra-prima admirada no mundo inteiro, seus realizadores nunca alcançaram a fama e o reconhecimento internacionais de outros diretores britânicos da mesma época, como Alfred Hitchcock, David Lean e Carol Reed. A bela e pouco conhecida filmografia dos Arqueiros merece definitivamente ser descoberta pelo grande público.
Powell e Pressburger trabalharam juntos pela primeira vez em 1940, no filme Contraband (1940). Em 1943, eles criaram sua própria companhia, a Archers Film Productions.
Os filmes da dupla costumam contar com o letreiro “Produzido, dirigido e escrito pelos Arqueiros”. Ainda assim, muitos especialistas apontam uma certa divisão de tarefas: Powell seria incumbido de grande parte da direção dos filmes, enquanto Pressburger estaria mais envolvido com a elaboração do roteiro, com a produção e com a edição dos longas-metragens. Dentre os frutos dessa parceria, destacam-se Paralelo 49 (1941),  E Um de Nossos Aviões Não Regressou (1942), Coronel Blimp - Vida e Morte (1943), Neste Mundo e no Outro(1946), Narciso Negro (1947) e Os Contos de Hoffmann (1951).
Powell e Pressburger também fizeram muitos trabalhos “solos”. O primeiro escreveu diversos roteiros para outros diretores e dirigiu apenas um filme sozinho, Twice Upon a Time (1953). O trabalho mais conhecido de Powell fora dos Arqueiros é, sem dúvida, A Tortura do Medo (1960), um filme cult extremamente controverso que é hoje considerado uma obra-prima por alguns críticos. 
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“Não se esqueça: uma grande impressão de simplicidade só pode ser alcançada pela agonia do corpo e do espírito.”
Powell e Pressburger são dois dos maiores nomes do cinema britânico e o trabalho dessa dupla influenciou grandes diretores dentro e fora do Reino Unido. Não é de se espantar, por exemplo, que Os Sapatinhos Vermelhos tenham inspirado Vincent Minnelli e Gene Kelly na realização do clássico hollywoodiano Sinfonia de Paris (1951). A sequência de balé que encerra o musical americano é um filho legítimo e assumido da obra-prima dos Arqueiros. Dizem, inclusive, que Gene Kelly fez os executivos da MGM assistirem a Os Sapatinhos Vermelhos algumas vezes e, somente assim, conseguiu convencê-los a incluir o monumental número de dança em Sinfonia de Paris.  
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“Uma bailarina que depende dos duvidosos confortos do amor humano nunca poderá ser uma grande bailarina. Nunca.”
O trabalho de Powell e Pressburger influenciou não somente seus contemporâneos, como serviu de inspiração para gerações posteriores. Martin Scorsese, por exemplo, é fã incondicional do trabalho dos Arqueiros e não é segredo para ninguém que Michael Powell é um de seus diretores prediletos. Segundo Scorsese, o conjunto de trabalhos da dupla desde o final dos anos 30 até o início dos anos 50 corresponde ao “mais longo período de cinema subversivo em um grande estúdio”. Sobre o seu encontro com o ídolo, no final dos anos 70, ele disse: 
Ele estava muito calado e não sabia o que pensar de mim. Eu tive que lhe explicar que o seu trabalho foi uma grande fonte de inspiração para toda uma nova geração de cineastas: eu, Spielberg, Paul Schrader, Coppola, De Palma. Nós falávamos muitas vezes de seus filmes em Los Angeles. Eles foram uma força vital para nós em um momento em que os filmes não eram necessariamente disponíveis de imediato. Powell não tinha ideia de que tudo isso estava acontecendo."
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“A música é tudo que importa. Nada além da música.”
O diretor de Taxi Driver viu Os Sapatinhos Vermelhos no cinema quando tinha nove anos e desde então apaixonou-se pela sensibilidade cinematográfica da dupla britânica. O diretor chegou a afirmar que Os Sapatinhos Vermelhos é um dos filmes em cores mais bonitos de todos os tempos. Em 2009, quase 20 anos depois da morte de Powell, Scorsese apresentou em Cannes a versão restaurada do musical.
A relação do diretor americano com os Arqueiros não se restringe a uma simples admiração. Scorsese é um dos grandes defensores e divulgadores da obra da dupla, subestimada por muitos e ainda pouco estudada. Outro detalhe interessante: a premiadíssima montadora Thelma Schoonmaker, parceira habitual de Scorsese, foi a terceira e última esposa de Powell.
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“A tristeza vai passar, acredite. A vida é tão sem importância. E a partir de agora, você vai dançar como ninguém jamais dançou”.
Os Sapatinhos Vermelhos conta a história de Victoria Page (Moira Shearer), uma jovem bailarina que sonha em se tornar profissional. Certa noite, ela encontra o enigmático Boris Lermontov (Anton Walbrook), diretor de uma famosa companhia de dança. Lermontov logo percebe o talento da jovem e a chama para se juntar a sua companhia. A bailarina vira uma das estrelas do Ballet Lermontov. No entanto, tudo vira de cabeça para baixo quando ela se apaixona por Julian Craster (Marius Goring), o compositor de “Os Sapatinhos Vermelhos”. O autoritário Lermontov exige que a moça se dedique exclusivamente à dança. Dividida entre o amor de um homem e a paixão pela dança, Victoria terá um destino trágico.
Os Sapatinhos Vermelhos é uma belíssima fábula sobre a doação incondicional de um artista a sua arte. O filme, que é também uma homenagem ao grande coreógrafo russo Sergei Diaghilev, é inspirado em um conto de fadas do escritor dinamarquês Hans Christian Andersen. Em uma cena do filme, Lermontov conta à bailarina a história de Os Sapatinhos Vermelhos:
“É a história de uma jovem que é devorada pela ambição de ir a um baile com um par de sapatos vermelhos. Ela recebe os sapatos e vai para ao baile. Por um tempo, tudo vai bem e ela está muito feliz. No final da noite, ela está cansada e quer ir para casa, mas os sapatos vermelhos não estão cansados. Na verdade, os sapatos vermelhos nunca estão cansados. Eles a fazem dançar na rua, sobre as montanhas e vales, através de campos e florestas, de noite e de dia. O tempo passa rapidamente, o amor passa rapidamente, a vida passa rapidamente, mas os sapatinhos vermelhos continuam.”
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“Eu quero criar para fazer algo grande de algo pequeno, para fazer uma grande bailarina de você. Mas, primeiro, tenho que lhe perguntar: o que você quer da vida? Para viver? - DANÇAR.”
São muitas as qualidades que fazem de Os Sapatinhos Vermelhos uma obra-prima. Esteticamente arrebatador e brilhante no uso das cores, o filme pode ser visto como a simbiose perfeita de diversas manifestações artísticas como a música, a dança e a pintura. O musical é, antes de tudo, uma exaltação do poder da arte. Além de incríveis números de dança, inspirados na obra de Diaghilev, o filme conta com a bela fotografia de Jack Cardiff, um dos grandes diretores de fotografia do cinema inglês. O elenco, por sua vez, é comandado pela escocesa Moira Shearer, exímia bailarina que conquistou  fama internacional com o filme e atuou em outras cinco produções para o cinema. Já o austríaco Anton Walbrook interpreta Boris Lermontov, um personagem fascinante, obsessivo e dominador.
O grande trunfo de Powell e Pressburger é o de combinar fantasia e realismo, o universo do sonho e o mundo da dança. Em certos momentos, o filme vira a mais a bela e pura abstração: tudo é movimento, ritmo e música. É admirável a maneira com que os Arqueiros traduzem em linguagem cinematográfica a essência do conto de fadas de Hans Christian Andersen. Eles fazem algo parecido com a ópera de Offenbach, no sensacional Contos de Hoffmann (1951). Esses dois filmes representam provavelmente o auge do apuro técnico no cinema dos Arqueiros.
Os Sapatinhos Vermelhos foi indicado a cinco Oscars, incluindo o de Melhor Filme, e levou o de Melhor Direção de Arte e o de Melhor Trilha Sonora, para o grande compositor Brian Easdale (outro parceiro habitual dos Arqueiros). O filme foi um sucesso dentro e fora do Reino Unido. Powell e Presspurger nos oferecem através deste clássico um espetáculo único, uma experiência cinematográfica intensa e inspiradora.

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Clássicos da Cinemateca - Contos da lua vaga depois da chuva


“Tantas coisas aconteceram. Finalmente você se tornou o homem pelo qual eu esperava. Mas ai de mim… eu não estou mais entre os vivos. Acho que esse é o caminho do mundo.” 
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“Esse seu amor é proibido. Você não ama sua esposa e filho? Você abriria mão da sua vida e os abandonaria também?”
Kenji Mizoguchi foi um dos primeiros grandes mestres do cinema japonês. Ele nasceu em Tóquio, em 1898. A infância e a adolescência do diretor foram marcadas por grandes dificuldades financeiras e traumas. Seu pai, carpinteiro de profissão, chegou a vender guarda-chuvas para os militares durante a guerra russo-japonesa. Aos 13 anos, Mizoguchi teve que abandonar a escola e virar aprendiz de farmacêutico no interior. Ele voltou para casa um ano depois, sofrendo de artrite degenerativa, doença que afetou sua maneira de andar pelo resto da vida.
Um dos acontecimentos que mais marcaram o jovem Mizoguchi foi a venda de sua irmã mais velha para uma casa de gueixas, quando esta era ainda adolescente. Foi essa mesma irmã quem cuidou dele e do irmão mais novo após a morte da mãe. Aos 18 anos, Mizoguchi começou a se interessar por diferentes manifestações artísticas: ópera, teatro e pintura. Antes de dirigir seu primeiro filme em 1923, ele trabalhou como designer publicitário em um jornal, como ator e como assistente de direção.
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“Este mundo é uma residência temporária, onde vamos chorar até que a madrugada venha coberta pelas ondas.”
Mizoguchi dirigiu mais de 90 filmes ao longo de seus 33 anos de carreira. Entre as décadas de 20 e 30, ele chegou a dirigir mais de um filme por mês. No entanto, o diretor declarou que foi a maturidade dos quarenta anos que o fez realmente distinguir quais verdades humanas ele queria expressar em suas obras. Mizoguchi deu especial atenção, em seus filmes, ao papel da mulher na sociedade japonesa e, por essa razão, ele é considerado um diretor feminista. Muitas das heroínas dos filmes do cineasta são mulheres marginalizadas e sofredoras, como gueixas e donas de casa infelizes. Alguns biógrafos apontam que esse interesse em retratar a condição da mulher no Japão está relacionado às dificuldades e aos sofrimentos pelos quais passaram a mãe e irmã do diretor. 
O cineasta deixou uma extensa filmografia, ainda que muitos de seus primeiros filmes tenham se perdido. Mizoguchi morreu aos 58 anos, vítima de uma leucemia. A influência do diretor cruzou fronteiras e ele adquiriu em vida grande reconhecimento dentro e fora do Japão. Ele ganhou dois prêmios no Festival de Veneza e chegou a ser indicado à Palma de Ouro em Cannes. Seu estilo influenciou grandes diretores e ele era tido como referência pelos cineastas da Nouvelle Vague francesa. Jacques Rivette e Jean-Luc Godard, por exemplo, eram grandes fãs do diretor japonês. Dentre os filmes mais célebres do cineasta estão: As Irmãs de Gion(1936), Crisântemos Tardios (1939), O Intendente Sancho (1954), Olharu – A Vida de uma Cortesã (1952) e Os Amantes Crucificados (1954). O filme Contos da Lua Vaga (1953) é geralmente apontado como a sua maior obra-prima.
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“Você não poderá retornar. Venha comigo para minha terra natal.”
Contos da Lua Vaga (ou Contos da Lua Vaga Depois da Chuva, tradução aproximativa deUgetsu Monogatari) é a adaptação de duas histórias presentesUgetsu Monogatari) é a adaptação de duas histórias presentes no livro de mesmo nome, escrito por Ueda Akinari, autor japonês do século 18. Uma das intrigas do filme, no entanto, é inspirada no contoDécoré! (1883) de Guy de Maupassant, escritor francês. O filme se passa no século 16, em meio às guerras civis japonesas. Genjurô vive com a esposa Miyagi e seu filho pequeno à beira do lago Biwa, na província de Omi. Ele faz potes de cerâmica para vender na cidade grande. Com esperança de ficar rico, ele decide iniciar uma grande produção de potes. Nessa empreitada, Genjurô conta com a ajuda de Tobei, seu vizinho e irmão, um homem obcecado pela ideia de virar samurai.
Após o ataque de soldados ao vilarejo onde moram, Genjurô e sua família, assim como Tobei e sua esposa Ohama, resolvem partir com as mercadorias para outra cidade. Temendo a ação de piratas, Genjurô decide deixar sua mulher e filho para trás, acreditando que eles estarão mais seguros. Ele promete voltar em breve para buscá-los. No entanto, chegando à cidade, Genjurô acaba por conhecer uma elegante e misteriosa mulher, Lady Wasaka, que o faz esquecer sua família. Enquanto isso, Tobei faz de tudo para virar um samurai, deixando também de lado sua mulher. Abandonada, Ohama é estuprada por um grupo de soldados e, depois, é obrigada a se prostituir para sobreviver. Ao longo do filme, acompanhamos o destino dos quatro personagens principais. Será que Genjurô e Tobei reencontrarão suas esposas?
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“Eu não morri. Eu estou ao seu lado. Seus delírios chegaram ao fim. Você é novamente seu verdadeiro ‘eu’ no lugar onde pertence. Seu trabalho está esperando…”
A popularidade de Contos da Lua Vaga no ocidente foi impressionante na época de seu lançamento e nos anos que se seguiram. O filme contribuiu enormemente para aumentar o interesse do público ocidental pelo cinema japonês. Tudo indica que o clássico de Mizoguchi tenha feito mais sucesso internacionalmente que dentro do Japão. Vários críticos e cineastas louvaram a direção do filme e ele é tido, ainda hoje, como uma das maiores joias do cinema japonês. O filme é, de fato, primoroso em inúmeros aspectos. A cena inicial e a cena final do longa-metragem são, por exemplo, belas rimas visuais. Contos da Lua Vaga começa e termina com a imagem do vilarejo, que nos é revelado através do mesmo tipo de movimento de câmera.
Outras sequências são inesquecíveis. Uma das mais famosas é aquela em que os personagens principais viajam de barco pelo lago Biwa, em meio à névoa. A belíssima fotografia e o canto mórbido de Ohama fazem com que essa cena ganhe contornos oníricos e inquietantes. A direção de Mizoguchi continua a nos impressionar ao longo do filme. É admirável, por exemplo, a maneira com que ele representa o estupro. Ao invés de mostrar o acontecimento em si, ele focaliza alguns elementos laterais, como os sapatos da personagem jogados na areia, do lado de fora da casa. Essa é uma maneira de representar indiretamente o horror que ocorre entre quatro paredes.
O diretor explora brilhantemente o jogo de luz e sombras para representar o universo de Lady Wasaka. É interessante observar como a iluminação participa da construção da personagem. Na maioria das vezes, ela tem uma brancura fantasmagórica. Em outros momentos, ela parece se misturar à escuridão e mesmo flutuar. Todo envolvimento de Genjurô e Lady Wasaka é, por sinal, tratado com uma sensibilidade impressionante. A perda de referência temporal e a impressão de um universo paralelo são resultado das escolhas formais do diretor. O preciosismo de Mizoguchi dá ao fantástico e ao sobrenatural uma dimensão estética impressionante.
Em Contos da Lua Vaga, Mizoguchi combina magistralmente realismo social e o sobrenatural. No filme, Miyagi e Ohama são vítimas da ambição e da imprudência de seus maridos. Ainda assim, são as personagens mais fortes. Se Mizoguchi explora o fantástico através da figura de Lady Wasaka, ele faz prova de um realismo impiedoso, tanto na cena em que Ohama tenta se defender dos soldados, quanto naquela em que Miyagi tenta proteger sozinha seu filho pequeno e impedir o roubo de seu último alimento.
O desfecho de Contos da Lua Vaga é de um lirismo inigualável: uma emocionante reflexão sobre a morte e sobre a pós-morte. A obra-prima de Mizoguchi é uma aula de cinema.
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