"Nós, fascistas, somos os únicos verdadeiros anarquistas, naturalmente, uma vez que somos donos do Estado. Na verdade, a verdadeira anarquia é a do poder."
"É quando vejo os outros degradados, que eu me regozijo, sabendo que é melhor ser eu do que ser a escória do povo."
Escrever sobre Salò é provavelmente uma tarefa mais fácil do que de fato assistir ao filme do início ao fim. Diante do horror exibido em cena é normal desviar o olhar, maldizer o diretor, querer parar de assirtir no meio, pular algumas partes... Há até mesmo relatos de quem chegou a passar mal ao ver algumas cenas. Não, não se trata do que normalmente chamaríamos de um filme de terror. No entanto, questão de gênero à parte, talvez este seja um dos mais terríveis filmes de terror já realizados. Ainda hoje, quase 40 anos depois do seu lançamento, Salò causa controvérsias, divide opiniões e, por incrível que pareça, continua banido em alguns países.
O diretor italiano Pier Paolo Pasolini, o gênio por detrás do filme, é certamente um dos maiores artistas europeus do século XX. Grande poeta e cineasta, Pasolini também escreveu romances, ensaios e peças de teatro. Além de ser um artista multifacetado, Pasolini foi um intelectual extremamente engajado, tendo sido associado por muito tempo ao partido comunista. A defesa corajosa de seus valores e de suas opiniões sobre a sociedade italiana, as diferenças de classes, o clero e o consumismo lhe valeram grandes inimizades. Seu brutal assassinato, em novembro de 1975, jamais foi devidamente esclarecido. Pasolini morreu aos 53 anos, poucos meses antes de Salò ser lançado nos cinemas, tendo nos legado diversas obras-primas, como O Evangelho Segundo São Mateus (1964), Mamma Roma (1962),Teorema (1968) e Desajuste Social (1961).
"Sempre que os homens são iguais, sem que haja diferença, a felicidade não pode existir."
Erudito e profundo conhecedor do universo das Letras, Pasolini realizou interessantes adaptações de clássicos da literatura universal, como Decameron (1971), Édipo Rei (1967), Os Contos de Canterbury (1972), As Mil e Uma Noites (1974) e Medéia (1969). Salò é baseado no romance 120 dias de Sodoma, do Marquês de Sade, escrito em 1785. A divisão do filme, em quatro partes, no entanto, é inspirada no segmento “Inferno”, da Divina Comédia de Dante. O filme contém, também, citações de obras de importantes pensadores do século XX, como Roland Barthes, Maurice Blanchot, Philippe Sollers e Simone de Beauvoir.
Pasolini tranpôs a narrativa, que se passava originalmente no século XVII na França, para os últimos dias do regime de Mussolini, na República de Salò, local de onde o ditador governava. Foi também nessa cidade que o irmão do cineasta foi assassinado em 1945. O filme conta a história de um grupo de fascistas libertinos que sequestram 18 adolescentes, garotos e garotas, e os mantêm enclausurados durante meses, impondo-lhes diversas formas de abuso (sexual, em sua maioria) e humilhação. Os jovens são vítimas das mais absurdas perversidades, torturas e atos de violência, arquitetados pelas mentes doentias de um grupo de homens ricos, poderosos e sádicos.
"Em todo o mundo, nenhuma volúpia agrada os sentidos mais do que o privilégio social."
Vários fatores fazem de Salò um verdadeiro soco no estômago. O filme não nos oferece, por exemplo, uma narração off ou um personagem principal, ou seja, ele não adota nenhum ponto de vista. Essa neutralidade e ausência de referências é extremamente desconfortável para o espectador. Além disso, as terríveis cenas de tortura são, na sua maioria, filmadas em longos planos, sem corte, que não oferecem qualquer escapatória para quem assiste. A brutalidade da história contrasta com a direção clássica e precisa de Pasolini. O diretor acentua a grandiosidade do cenário e o seu caráter opressor, através de belíssimos enquadramentos, marcados pela simetria e acompanhados pela bela trilha sonora de Enio Morricone.
Muitos afirmam que o filme é uma crítica ao poder opressor da sociedade de consumo capitalista. Chegam mesmo a afirmar que a famosa cena de coprofagia (alimentar-se de fezes) é uma metáfora da ascensão da cultura do junkie food. No entanto, a obra parece ir além dessas questões, sendo um exame impiedoso da crueldade humana, do abuso de poder, do autoritarismo e de todas as formas de corrupção. Uma coisa é certa: poucos cineastas ousaram ir tão longe ao tratar da violência e do sexo, o que faz de Salò um dos filmes mais audaciosos e provocadores de todos os tempos.
Melhor filme de Pasolini? Pior? Provavelmente existem argumentos para defender as duas hipóteses. Obviamente, o filme não faz unanimidade, mas também tem grandes admiradores e ferrenhos defensores. Não se pode negar, no entanto, que se trata de uma obra fundamental da filmografia do brilhante diretor italiano. Salò revela-se importante não apenas pelas discussões que levanta, mas também por nos fazer refletir sobre os limites (ou a falta deles) da arte na representação da realidade.
"O gesto obsceno é como a linguagem do surdo-mudo, um código
que nenhum de nós, apesar do capricho irreprimido, pode transgredir."